Do desejo (Jung, Freud e Barthes)

18:51




Imagem retirada de http://elaseetc.blogspot.com/



Ao ler o excerto de Jung (1) não pude deixar de me deter no retorno à figura da Mãe, que Jung põe em evidência. Aliás, parece ser esse o tema central do excerto, bem como o simbolismo da relação incestuosa mãe-filho, que poderá corresponder à fase fálica (ou pré-edipiana) em Freud. A propósito desta questão, lembrei-me de uma passagem de Roland Barthes em Fragmentos de um Discurso Amoroso onde o autor define o abraço apaixonado:

"1. Fora do acasalamento […] há este outro abraço, que é um enlace imóvel: estamos encantados, enfeitiçados: estamos no sono, sem dormir; estamos na voluptuosidade infantil do adormecimento: é o momento das histórias contadas, o momento da voz, que me vem fixar, siderar, é o retorno à mãe […]. Neste incesto reconduzido, tudo fica suspenso: o tempo, a lei, o proibido: nada se esgota, nada se quer: todos os desejos estão abolidos pois parecem definitivamente realizados.2. Porém, no meio deste abraço infantil, o genital acaba fatalmente por surgir; destrói a sensualidade difusa do abraço incestuoso; a lógica do desejo põe-se em movimento, regressa ao querer-para- si, o adulto sobrepõe-se à criança. Sou, então, simultaneamente dois sujeitos: quero a maternalidade e a genitalidade. (O apaixonado poderia definir-se: uma criança que se revolta: assim era o jovem Eros)." 
(R. Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, Lisboa, Edições 70, pp. 21-22) 
Fiquei na dúvida se deveria usar o excerto de Barthes para fazer a ponte entre Jung e Freud, mas pareceu-me haver semelhanças. Na verdade, o sacrifício ritual do corte da seiva no excerto de Jung traz consigo a ideia de castração de Freud: a passagem da fase fálica à interiorização da lei em Freud, ou a passagem do infantil à idade adulta, o processo de independência e autonomia: a separação. 
Ainda sobre o tema da Mãe/materno, não resisto a colocar uma questão: não poderá a figura da Mãe representar o mundo seguro, estável, protector, inquestionável, sensível, com as suas verdades inabaláveis? E não significará o processo de crescimento/autonomização/separação a revolta do eu contra esse mesmo mundo protector e seguro mas também dogmático, imperativo, homogéneo, na ideia de que aquilo que ao mesmo tempo nos protege, tranquiliza e dá segurança, também nos impede de crescer? É talvez este crescimento que se depreende das palavras de Roland Barthes (tomando por modelo Freud) em que "no meio deste abraço infantil [o recuar ao mundo seguro e protector] o genital acaba fatalmente por surgir […] a lógica do desejo põe-se em movimento, regressa ao querer-para-si, o adulto sobrepõe-se à criança".
O curioso é que Barthes não conclui, não há desfecho: "quero a maternalidade e a genitalidade".
Não será esta questão da simultaneidade dos desejos do mesmo âmbito que a questão sobre a singularidade do sujeito versus a espécie, ou sobre a inalterabilidade versus alterabilidade da líbido (questões alvo de reflexão por Sloterdijck, Deleuze e Guattari)? *


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* Texto elaborado para o Curso Breve "O Inconsciente e o Sagrado" - 2006/2007 (leccionado pela Professora Doutora Cristina Álvares, Departamento de Estudos Franceses, Universidade do Minho)




(1) "En Gaule, le druide ne devait monter sur le chêne sacré pour y couper le gui rituel qu’au cours de cérémonies solennelles et après avoir accompli des sacrifices. Ce qui pousse sur l’arbre c’est l’enfant que l’on serait soi-même, image renouvelée et rajeunie, et c’est précisément ce que l’on ne peut avoir parce que la prohibition de l’inceste s’y oppose (…). Le gui, parasite poussant sur un arbre, est comme ‘l’enfant de l’arbre’. L’arbre ayant, nous l’avons vu, une signification d’origine, comme la mère, représente commencement et source de vie, c’est-à-dire cette force vitale magique si familière au primitif, dont on fêtait le renouvellement annuel par la vénération d’un fils divin, d’un ‘puer aeternus’ (…). Les êtres de ce type n’ont en partage qu’une courte vie, car ils ne sont que des anticipations de quelque chose que l’on désire et espère. C’est là une réalité telle qu’un certain type ‘fils à maman’ présente ‘in concreto’ les caractères du jeune dieu florissant, au point qu’il est emporté par une mort prématurée. La raison en est qu’il ne vit que sur et par la mère, qu’il ne pousse de lui-même aucune racine dans le monde, par conséquent qu’il vit dans un inceste perpétuel. Il est, pourrait-on dire, un rêve de la mère (…) bientôt englouti à nouveau. Nous en avons des exemples excellents dans les fils dieux de l’Asie Mineure comme Tammuz, Attis, Adonis et le Christ.(…) Par conséquent le druide qui le [le gui] coupe le tue aussi, renouvelant par cet acte l’autocastration mortelle d’Attis et la blessure que fit à Adonis la dent du sanglier. Tel est le rêve de la mère à l’ère matriarcale, alors qu’il n’y avait pas encore de père qui se tînt à côté du fils." (Jung, Métamorphoses de l’âme et ses symboles, 1912, p.434)

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7 comentários

  1. Cara Patrícia:
    Não sabia da existência do "omnis persuasio carcer est".
    Vai já para os meus links!
    Abraço
    ÁLvaro

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  2. Pat.,eu pergunto ,quem quer ver quem como uma protecção:a mãe ou o filho,ou ambos?Porque se tem tanto medo da separação,do corte do cordão umbilical?Será ,a protecção ,ou o excesso dela que impede o crescimento? E ,será mesmo protecção que nos querem dar ,ou medo de nos perder para outra pessoa?

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  3. Diz algo,este tema é interessante!Sem dúvida!!
    A resposta disto,está em nós ,ou nos outros?
    Ou ,em ambos?
    Não sei se vem ao caso mas,no outro dia um senhor relatou que tinha dificuldades em que alguém que ele gostasse,gostasse dele!Foi a um padre para obter uma solução.Resposta deste perante o problema:"já pensou que o amor pode nunca fazer parte da sua vida?!...."
    Pensei ,até pode ser!!Mas ,se ele for a pensar como o padre ,nunca saberá...se ele se fechar para o amor ,será ele o primeiro a impedir que o amor lhe apareça ...
    Que opinião tão claustrofóbica !!!

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  4. Olá Bela,
    Não sei a resposta para o teu primeiro comentário. Na verdade, a necessidade de protecção pode vir dos dois: da mãe e do filho. No caso do texto a que me refiro, o de Barthes, e com a salvaguarda de que não sou especialista na matéria, trata-se de uma Mãe simbólica.
    Na minha opinião, e conta como isso apenas, falando em termos concretos, o excesso de protecção limita e pode impedir o crescimento. Só crescemos quando ganhamos autonomia, responsabilidade, quando assumimos a nossas decisões e as consequências delas. Quando estamos preparados para admitir os nossos erros e quando aceitamos crescer com eles.
    Lembro-me de um conselho muito sábio de um padre, professor de Religião e Moral, que dizia: "Nunca façam nada cujas consequências desses actos não estejas disposta ou preparada para assumir ou aceitar". Lembro-me também de uma história que o Erivan me contou sobre o dia em que fez 18 anos: estava ele a festejar e a dizer que agora ia poder ter carta, votar... quando o pai ou avô lhe disse "também vais poder ir preso".
    Ser adulto é isso mesmo, é poder decidir, mas também aceitar responsabilidade pelas consequências, assumir.
    Nas minhas sessões de psicanálise este foi o meu maior progresso: decidir que queria crescer, com todos os riscos e sofrimentos.
    Na verdade, é apenas uma decisão, porque os actos que se seguem e que te impulsionam o crescimento, e que se esperam ser em conformidade com essa decisão, surgem durante toda a vida. E há recuos, sim, como há avanços.
    Mas, no fim, é a tua vida, a tua decisão, a tua escolha. E é-o a partir do momento em que decides que tens o controlo sobre elas. E no momento preciso em que tomas consciência disso (o tal insight), cresces um pouco. E dificilmente voltas atrás.
    Temos medo, às vezes, sim, e queremos voltar para o abraço paterno/maternno protector e seguro, onde tudo "fica suspenso: o tempo, a lei, o proibido: nada se esgota, nada se quer: todos os desejos estão abolidos pois parecem definitivamente realizados". Aí estamos e somos crianças. E voltamos aí muitas vezes, qundo estamos inseguros, tristes, deprimidos. Mas é assim com toda a gente, creio; uns mais do que outros.
    Mas , no final, há que decidir entre ser criança, querer a maternalidade, ficar nesse lugar/tempo suspenso, seguro, alheio ao mundo e ao Outro; ou crescer, querer a genitalidade (simbolicamente), e decidir ser-se além do mundo infantil onde vivemos até sermos adultos.
    Decidir entre estar/ser seguro e recluso ou estar/ser livre e desprotegido.
    Claro que há meio-termo. Mas, seja como for, a decisão é sempre nossa.

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  5. Termos esse poder de decisão/ escolha é bom mas,o mais difícil é dar o primeiro passo.O regresso à infância,a esse lugar seguro,deverá ser, penso eu ,como a solidão:"é uma morada não para se estar, mas para se visitar"...

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  6. Sim, como a solidão. Na verdade, esse lugar protegido e seguro do regresso à infância é também desligado do mundo, do Outro, como a solidão.

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  7. Enquanto ficas à espera, a vida passa por ti.

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