Consumo

O livro de reclamações

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Para bem da minha sanidade mental, este post precisava de ser escrito, hoje sem falta, de preferência. É que há um efeito catarse na escrita, como dizem, e se for pública, tanto melhor.
Quem tem agora, neste preciso momento, mais de trinta anos e viveu a sua infância entre Minho, Trás-os-Monte e Beiras, faz parte da geração de oitenta que passou a infância toda a ter medo e vergonha. Qual período pós-revolucionário! A geração imediatamente nascida nos anos pós-revolução ficou com as mesmas mazelas enraizadas nas gerações dos seus pais. A revolução passou por cá por cima meio a medo, se é que passou sequer.
Éramos gerações castradas. Havia a vergonha de falar, vergonha de perguntar. Havia o medo de incomodar. Havia a vergonha de faltar à missa. Havia a vergonha de ser apontado pelo padre. Havia a vergonha de interrogar (ainda me lembro de ouvir uma amiga de infância a relatar, revoltada, um episódio em que perguntava à catequista como era possível a Maria ter filhos sem casar e esta lhe responde, meia vexada, meia ameaçadora, se não tinha vergonha de fazer perguntas como aquela). Havia a vergonha de dar beijos e abraços. Havia a vergonha de se exprimir, a vergonha de questionar. Havia a vergonha de chorar, de sorrir. A vergonha de sentir medo. Havia a vergonha de sentir vergonha. A vergonha da vergonha.
E havia o medo. Havia o medo do padre (ainda me lembro do medo do meu irmão quando lhe sugeri para falsificar a assinatura do padre para não ter de decorar não sei quantas rezinhas - não pensem que era coragem, não, eu era apenas inconsequente). Medo do pai/mãe (ou dos dois). Medo do polícia, da Polícia. Medo do médico. Medo da professora. Medo do director de escola. Medo do Sr. Doutor. Medo dos que falavam com o Sr. Doutor. O medo de parecer mal. O medo de não parecer. O medo do medo. O medo da vergonha. O medo de tudo e de nada. O medo de fazer bem, o medo de fazer mal. O medo de não fazer, o medo de fazer. Enfim...
Nunca para mim fez tanto sentido uma frase que li um dia, algures, que dizia que os países do norte da Europa viviam com o sentimento de culpa e os países do sul da Europa com o de vergonha. Nenhuma definição nos assentava tão bem, pensava eu.
As mazelas ficam, entranham (e o medo e a vergonha são mazelas com alto grau de entranhamento) e, mais cedo ou mais tarde, acabam por vir à tona. Umas vezes vêm da melhor maneira (sublimadas, diriam os psicanalistas), outras vezes vêm da pior maneira, em comportamentos desviantes.
Ora, o que é que tudo isto tem a ver com o livro de reclamações? É que ontem pus-me a interrogar-me se pedir o livro de reclamações seria um comportamento sublimado ou um comportamento desviante. Depende, pensava eu, da causa que levou a pedir o livro e do fim que pretendo com a reclamação. É que para a minha geração, pedir um livro de reclamações é quase um acto heróico, verdadeiro acto de coragem. Se a causa e o fim são nobres, o mais certo é ser um comportamento sublimado. Afinal, como eu digo sempre à minha filha, há que escolher bem as batalhas, ou corremos o risco de tornar as nossas reivindicações banais.
Racionalmente é assim, mas a verdade é que quando chegamos ao ponto crítico de pedir o livro de reclamações, o estado da nossa racionalidade começa a ficar afectado: não conseguimos distinguir (e o melhor é sempre esperar um dia ou dois antes de tomar decisões). Por outro lado, quando chegamos ao ponto de começarmos a ficar toldados pela irracionalidade, significa que passamos o ponto de não retorno e, se passamos esse ponto, o mais certo é termos um bom motivo para reclamar. Pela lógica, quanto maior é a zanga, maior é o motivo para reclamação.
Reconheço que cada um terá o seu, mas para mim, o ponto de não retorno é a desconsideração e o desrespeito não retratados. Passado esse ponto, no meu entender, não há diálogo possível. E, ou, num dia bom, ignoramos e toleramos ou, num dia mau, pegamos na caneta e pedimos o livro de reclamações. É que, depois de anos e anos de repressão imposta ou auto-imposta, as emoções precisam de um momento de catarse. Por vezes, não se podem nem devem reprimir. Se estes momentos de catarse são sublimes ou não, talvez não interesse verdadeiramente no momento. Depois sim, mas depois já é tarde.
Pois para quem sentiu nescessidade destes momentos de catarse, deixo a seguir alguns sítios úteis para se manterem informad@s. E reclamem. Reclamar, mais do que um momento de purgação, é um direito e, diria eu, um dever.

Páginas da DECO http://www.deco.proteste.pt/direitos/um-livro-de-reclamacoes-em-cada-canto-s407841.htm; http://www.deco.proteste.pt/direitos/livro-de-reclamacoes-queixas-on-line-s517561.htm;
Direcção Geral do consumidor http://rtic.consumidor.pt/preenchimento_livro.pdf;
Portal informativo da Câmara Municipal de Sintra http://www.cm-sintra.pt/Artigo.aspx?ID=3809.

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