África

De solidariedade e utopia

23:22

2001 Suai

Foto emprestada de Sérgio Gaspar.


Há tempos que queria escrever sobre solidariedade. O tema é-me caro e por isso demorei a escrever este post.
Se tivesse de recordar a origem do meu interesse por causas sociais eu terei que ser justa e recuar até à minha infância. Eu fui educada num colégio privado católico, administrado e gerido por uma congregação de freiras franciscanas. Esse colégio, para além da maioria dos alunos que o frequentava em regime de externato, como era o meu caso, albergava, de vez em quando, dois pares de meninas oriundas de famílias problemáticas, que toda a gente julgava órfãs. É curioso porque, na minha cabeça, eu não pertencia ao lado dos meninos do regime de externato. Por razões que agora não interessam, na minha cabeça, eu pertencia ao internato; eu fazia parte das meninas órfãs que viviam ali, ao lado dos desprotegidos. Também nesse colégio havia uma ordem pré-estabelecida que vigorava no sentido de impor a ordem e a obediência. A vida no colégio assemelhava-se, por certo, à vida de um qualquer mosteiro. Tudo tinha uma ordem e um horário. Cada irmã tinha a sua função, havia hierarquias e lembro-me especialmente de uma irmã pequenina que nos chamava todas as tardes para irmos rezar o terço na capela do colégio. Não era um ritual obrigatório, mas, o hábito tornou-o assim, de tal forma que, na minha cabeça, negá-lo era quase pecado. Sim, o pecado, essa noção do pecado, que nos tolda o discernimento e a capacidade crítica, ao impor-se pelo medo (muitas coisas haveria a dizer sobre o pecado... fica para outra altura). Foi, precisamente, com esta irmã pequenina, que eu conheci a Audácia, uma revista católica que tinha, e tem, por objectivo, divulgar as missões dos missionários combonianos em países pobres de África.
Mais tarde, na visão de uma marxista de 18 anos, como fui (militante aguerrida e praticante), viria a entender aquilo como pura propaganda católica, ao serviço das forças capitalistas que se queriam impor nas colónias africanas. Adiante...
De tantas histórias ouvir desses missionários combonianos, eu comecei a crer que também eu seria missionária. Mais, seria freira - pensava eu - ao serviço daquelas causas e lutaria pelos pobres, fracos e desprotegidos. Mais tarde abandonei a pretensão de ser freira, porque me diziam que as freiras são casadas com Deus e filhos de Deus só haveria um por toda a humanidade. E eu queria trezentos filhos. Claro que, na altura, para a dissuasão da ideia de vir a ser freira também ajudou um rapazinho mais velho que teimava em desvituar-me. Mais tarde veio a total desilusão com todo o sistema do catolicismo, com o reconhecimento daquilo que mais tarde viria a ter um nome: a pedofilia. Eu conhecia-a sem a reconhecer, mascarada de prepotência, autoritarismo e irracionalidade, imposta pelo medo. Hoje, os media transformaram-na numa banalidade.
Como me diz um amigo meu, eu tomei a mensagem e esqueci o mensageiro. A minha noção de solidariedade nasceu, por muito que me custe dizê-lo, no seio de uma educação católica reaccionária, obscura e totalmente opressora.
A adolescência, claro, foi passada a revoltar-me contra o sistema, contra uma cidade velha, preconceituosa e hipócrita; andava a tentar provar a mim e aos outros que toda a forma de autoridade é reaccionária, desnecessária e violenta. Eu via-a assim. E todas as desculpas eram boas para enfiar o nariz nos livros da biblioteca pública - ainda não havia Internet - a pesquisar sobre autoritarismo, liberdade e anarquia. Tive nas mãos um dos primeiros livros publicados sobre anarquia em Portugal: o livro O ABC da Anarquia, de Edgar Rodrigues, um dos poucos autores que se dedicou ao estudo dos movimentos anarquistas em Portugal. Fui, nesse tempo, moldada pelo som do heavy metal, do black metal, fui quase punk, não fosse a minha total aversão à violência, mesmo que visual. Ainda andei com brincos no nariz, unhas pretas e calças rasgadas: uma violência para a época, na cidade provinciana dos padres e arcebispos.
Às tantas, inevitavelmente, tropecei no marxismo, e por consequência no comunismo; fiz-me militante. Ajudei a convocar manifestações, a elaborar panfletos... participei em manifestações. A certa altura tornou-se difícil conciliar comunismo com liberdade pessoal e desertei. No comunismo, lamento dizê-lo, ou seguimos a lógica do grupo, ou estamos excluídos. O indivíduo, ali, só existe como ponto débil e disforme no meio da massa. Não tem vontade própria. Gostava de poder dizer que muita coisa mudou desde 1995, mas ainda hoje é assim...
Nessa altura já conheci a Amnistia Internacional, fiquei membro, até hoje. De entre todas as ONG que fui conhecendo depois, só a Amnistia me parecia sempre coerente, arrojada e libertadora. Liberdade era a palavra de ordem.
Na universidade, tive o privilégio de poder ler com prazer os autores clássicos ingleses de literatura utópica: Shakespeare, More, Burgess, Huxley, Orwell. Fiquei fã de literatura utópica. Estudei-a criticamente, analisei-a à lupa... fui pelo caminho da Filosofia. Conheci Rabelais, Erasmo, Voltaire, Nietzsche e o nihilismo, Sartre e o existencialismo, Beauvoir e o feminismo. E, depois... voltei à infância. Que querem? O cristianismo é a maior utopia do ocidente e a única que ainda sobrevive. Sou uma ateia utópica e crente. Crente no ser-humano.
Mais tarde fui para Timor-Leste com uma missão, a mesma que eu tinha lido na revista Audácia na minha infância. Timor foi o primeiro lugar onde, pela primeira vez, não me sentia estranha e estrangeira. Ali eu era quem eu era. Ali eu tinha sentido. É uma experiência avassaladora e inquietante.
Para este post interessa o facto de, ao ver de perto o que faziam muitas das organizações que eu conhecia apenas dos relatos que ia lendo em Portugal - UNICEF, OXFAM, ONU, Cruz vermelha -, ter reconstruído ali todo o meu conceito de solidariedade. O conceito anterior alterou-se. A solidariedade deixou de ser uma palavra abstracta para se tornar algo de muito concreto e real. O impacto da realidade devolveu-me ao mundo e pude sentir, pela primeira vez, que fazia parte de qualquer coisa de real e extraordinária. Das pessoas que conheço e que fizeram comigo, em 2000, a viagem do aeroporto de Díli até ao ACAIT, o edifício onde ficava localizada a Missão de Portugal, nenhuma se esquece do silêncio avassalador que se sentiu no carro ao atravessarmos a cidade até ao centro; era uma cidade inteira reduzida a cinzas: edifícios, ruas, vegetação... Era preciso ter vivido aquilo para saber.
É por este momento que a solidariedade me é cara. Outras coisas foram-se juntando: um ano no Burundi, uma passagem por África do Sul, Marrocos, Quénia, Brasil... há lugares que se tatuam na nossa personalidade, Timor e África são dois deles.
Quando hoje oiço dizer que a solidariedade é reaccionária, entendo o porquê, mas discordo, sem revolta. Ouvia há tempos um dirigente partidário de esquerda revoltar-se contra a existência de instituições de solidariedade social ou iniciativas como o Banco Alimentar contra a Fome. Entendo o que está por trás da revolta. Por vezes, a solidariedade mascara-se de bom samaritano para confirmar e dar razão à ordem estabelecida, ao status quo, que assenta na tradição milenar da pirâmide social, na divisão de classes sociais e na deturpação daquilo que deveria ser trabalho justo e um direito fundamental. De facto, se o contrato social funcionasse como deveria, não faria sentido existir nenhum banco alimentar contra a fome, ou outra ONG do género em Portugal ou no mundo.
Mas uma luta não invalida a outra: uma é localizada e imediata, a outra é mundial e a longo prazo. Como diz o meu marido, é certo que existe corrupção, jogos de poder, imperialismo, interesses macabros, por trás de instituições como a ONU ou outras, mas, se não chegar às populações carenciadas o terço da ajuda que essas instituições recebem dos países que dela fazem parte (bem certo que o restante é desviado para interesses subreptícios), se nem sequer essa pequena ajuda chegasse aos lugares onde ela chega hoje, se isso não acontecesse, o cenário seria 100 vezes pior.
Num mundo perfeito, não haveria guerras, não haveria fome, não haveria violações de mulheres e crianças... ou qualquer outra violação de direitos humanos. Num mundo perfeito todos viveriam em paz e abundância. Num mundo perfeito, não haveria armas, polícias, ladrões. Num mundo perfeito não haveria fome, carência de médicos, de habitação. Num mundo perfeito, não haveria revoltas sociais, injustiça, medo, autoritarismo, corrupção. Num mundo perfeito, não haveria deuses, padres, impérios. Num mundo perfeito todos os pensamentos discordantes seriam aceites e a tolerância e respeito por pessoas e pelo ecosistema seria real. Num mundo perfeito, aceitar-se-iam as diferenças como preservação da diversidade e aceitar-se-ia o Outro pelo simples facto de estar no mundo e existir.
E porque vivemos apenas no melhor dos mundos possíveis, como dizia Cândido, o optimista, a solidariedade, qualquer que seja a sua forma e manifestação, é imprescindível. Patricia dixit.


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