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A EURALEX inicia política de acesso livre

19:47

A EURALEX (European Association for Lexicography) criou uma versão digitalizada dos artigos apresentados nos seus congressos, desde o primeiro congresso, realizado em Exeter em 1983, ao 14 º congresso, realizado em Leeuwarden em 2010. Os trabalhos estão disponíveis em formato PDF, pesquisáveis via serviço Google Site Search e podem ser também consultados, por ano, na própria página da associação. A EURALEX inicia aqui, assim, a sua política de acesso livre.

Na página da associação é possível também ter acesso a uma extensa bibliografia de autores e trabalhos na área da lexicografia.

África

Do medo do Outro

12:12

Era o ano de 2004, Outubro. A minha filha tinha 9 meses e eu preparava-me para viajar para o Burundi com ela. O Burundi é um país da África subsariana, situado entre o Ruanda, a Tanzânia e a República Democrática do Congo. É considerado um dos mais pobres países de África e também um dos mais pequenos.
Na consulta de apoio ao viajante, entre a recomendação de profilaxia para a malária e a vacina para a febre amarela, entre outras, a que já me tinha habituado quatro anos antes, na partida para Timor Leste, o médico aconselhou-me a não viajar com uma criança tão pequena para um lugar tão inóspito em termos de saúde pública. A minha filha, por ser ainda bebé, não podia receber as vacinas e a profilaxia contra a malária estava totalmente contra-indicada. Não havia nada que a protegesse. Tive ali, naquela consulta, uma verdadeira aula de medicina e sociologia: fiquei a saber sobre as rotas da peregrinação a Meca e os perigos dessas mesmas rotas e fui informada, a frio, sobre os problemas de saúde pública da região. Devo reconhecer a competência do médico, mas a primeira pergunta que me surgiu de toda aquela informação foi 'Como sobrevivem as crianças ali?'.  Foi apenas isso o que eu pensei naquele momento, entre as ameaças de uma viagem apocalíptica, que assustou, por certo, a minha mãe. Pode parecer uma pergunta absurda para uma mãe que está prestes a levar a sua filha para um lugar pouco recomendável, mas a Carolina não era diferente das outras crianças, não era mais vulnerável, pelo contrário. Estava vacinada desde que nascera contra grande parte das doenças infantis graves. Era forte e saudável e tinha tido os melhores cuidados pré e pós natais. Tinha e teria acesso a cuidados de saúde e poderia sair do país, caso fosse necessário. Era, na verdade, privilegiada. Nada do que o médico me disse na consulta mudou a minha decisão de viajar.
Já no Burundi, na capital Bujumbura e, depois em Makamba, fui aconselhada a não sair de casa sozinha, a não sair de casa com uma criança tão pequena e a evitar lugares demasiado populosos e públicos. Mais uma vez, as recomendações não serviram de muito. E por muito aparato  que pudesse haver quando nos deslocávamos entre cidades, com escolta da polícia e militares - aparato este inevitável, dadas as circunstâncias profissionais do meu marido -, o único perigo que havia, quando nos deslocávamos sozinhas ao mercado público, era o de sermos rodeadas de meninos sorridentes, que se acotovelavam para ver e tocar na Carolina. Não é todos os dias que numa cidade do interior rural do Burundi surge uma bebé branca. Mas o diferente ali era bom, não era ameaçador, vinha na forma de um bebé de 9 meses. A Carolina aprendeu a andar e a falar (em francês, kirundi e português) no Burundi. As suas primeiras palavras foram "chapeau" ("chapéu" em francês) e "ego" (que significa "sim" em kirundi). Crescia e era saudável. E o único episódio que inspirou cuidados médicos durante o nosso tempo no Burundi foi uma alergia de pele ao calor. Claro que cumpríamos ao detalhe as recomendações médicas básicas: cobrir as portas e janelas com redes mosquiteiras, não sair depois do pôr do sol por causa dos mosquitos e usar rede sobre as camas.






Fiquei, de resto, a saber que os cuidados médicos no Burundi não são gratuitos, havendo casos em que os pacientes ficam presos no hospital, sem alimentação gratuita e dependente de familiares, até que seja saldada a conta dos cuidados de saúde. Cuidados gratuitos de saúde existiam por parte de ONGs ou por agências da ONU, como a UNICEF, mas também esses cuidados não cobriam os casos menos graves que, ainda assim, eram preocupantes. 
Esta história vem a propósito de uma mensagem que recebi há dias numa das redes sociais, quando postei uma fotografia do rosto da Carolina, agora com 8 anos. Na altura recebi uma mensagem pessoal a alertar-me para o perigo de expor fotografias de crianças nas redes sociais. À falta de melhores palavras, diria que a mensagem me deixou triste e pouco confortável, não com o perigo para o qual a mensagem me advertia, mas com a própria mensagem.  Entendo a preocupação e a intenção do autor da mensagem, da mesma forma que entendo as preocupações do médico no episódio que relatei acima mas devo dizer que, àparte os cuidados básicos que tive (como não fornecer contactos pessoais que possam identificar moradas), da mesma forma que fiz quando fui para o Burundi, não quero viver com essas preocupações. Não é irresponsabilidade ou inconsequência, é uma forma de estar no mundo. Não tenho a pretensão de achar que ela é a correcta nem impô-la a ninguém. É bem possível que seja errada, e que esteja a descuidar a minha segurança e dos meus. Mas é o meu modo de ver o mundo, dadas as circunstâncias que a vida me tem apresentado. Não quero prescindir dele. E esta forma de estar no mundo implica não ver o Outro como uma ameaça e dar-lhe o benefício da dúvida. Vê-lo como um igual, em direitos, sentimentos, atitudes. Foi isso que respondi quando mais tarde me perguntaram porque me expunha eu àquelas situações. Não é uma questão de exposição, é escolher viver sem receio do Outro. 
E este sentimento vai sendo tão raro, com o pós 11 de Setembro e as acusações de terrorismo e o fundamentalismo, que partem de diferentes latitudes. É só na exposição à diferença que podemos entender essa mesma diferença e entender-nos a nós mesmos e às nossas peculiaridades. Mas é também nessa exposição que tomamos consciência de como somos iguais: seja num pequenino país no centro de África, numa ilha no meio da Ásia, num país sul-americano gigantesco, neste pedaço de terra que constitui o final (ou começo) da Europa que é Portugal, ou no espaço aberto e caótico, e por isso mesmo fascinante (mais fascinante que ameaçador) que é a Internet. Só na exposição e compreensão do Outro podemos minar o nosso próprio medo. Entendi isso muito bem mais tarde quando, num curso breve designado "Estudos sobre o inconsciente e o sagrado: Da invenção da psicanálise ao fenómeno religioso", na Universidade do Minho, nos foi pedido para comentar como seria a interpretação freudiana de uma entrevista a um jihadista. O meu trabalho deu nisto. De resto, sobre este tema já tinha escrito neste blog noutras ocasiões: aquiaqui e aqui 



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