Ciência

A Linguística, a norma, o purismo e o Acordo Ortográfico

12:38

Imagem: fotografia do verbete 'norma', do dicionário de José Pedro Machado (1995: 220)


E quero, como é bem de ver, chamar a atenção dos linguistas para o papel que devem ter na fixação da norma, papel que por vezes parecem desdenhar, ou porque acham a ocupação desqualificada, ou porque estão distraídos a contemplar a gravitação dos universais, ou estão mergulhados em mares de corpora, ou desaparecidos nas profundezas arqueológicas da língua.
Ivo Castro (2003: 11-24) 
Eu devo dizer que este post começou a ser escrito há mais de um ano - deem-me a devida ressalva por isso -, mas a total falta de motivação para tratar o tema e o avolumar de trabalho que se seguiram fizeram com que o adiasse continuamente. Além do mais, o assunto, a ser tratado, merecia ser tratado com ponderação, até para não ferir susceptibilidades, algo que sempre me preocupa, talvez demasiado, confesso. Pois então, depois de mais de um ano guardado nos rascunhos, aqui vai ele.

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa mais recente foi assinado em 1990, foi aprovado pela Assembleia da República e ratificado pelo Presidente em 1991. O Acordo do Segundo Protocolo Modificativo foi aprovado em 2008 e entrou em vigor em 2009, mas só uma resolução do Conselho de Ministros, em Janeiro de 2011, determinou a sua aplicação no sistema de ensino no ano lectivo de 2011/2012 e nos organismos governamentais a partir de Janeiro deste ano. Ficou, entretanto, salvaguardado um período de seis anos para adaptação à nova grafia. 
Não obstante a sua recente entrada em vigor, vários aspectos da  língua foram sendo alterados ao longo destes vinte anos, de forma mais ou menos conscientes. Mais de vinte anos passaram sobre a data da sua redacção e o assunto deixou de estar na ordem do dia.
A primeira imagem que me surge quando tento perceber este Acordo Ortográfico é a de um parto difícil, doloroso e de gestação demorada. Há tempos, o então Ministro da Cultura percebeu que, além de ter tido um nascimento difícil e doloroso, o naciturno precisava de cuidados paliativos, cuidados estes que não recebeu durante a gestação (http://www.tvi24.iol.pt/aa---videos---sociedade/acordo-ortografico-francisco-jose-viegas-cultura-vasco-graca-moura-tvi24/1329196-5795.html). Como escreveu António Nabais, o "processo nasceu torto e, para isso, existe um ditado muito antigo". Eu sou mais optimista, e creio que o processo tem ainda tempo para se endireitar. Afinal, já foram expostos todos os argumentos contra e a favor: foram redigidos pareceres, abaixo-assinados, artigos e até livros (http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/AOLP90/index.html). E à pergunta de saber porque seriam estes pareceres tidos em conta agora quando não o foram até aqui, digo apenas que este período de transição é crítico para a opinião pública, porque todos se verão, pela primeira vez, forçados a usar a nova grafia. Discordo, por isso, de Francisco José Viegas quando critica os portugueses por chegarem sempre tarde às questões importantes. É uma questão de simples pragmatismo:  o contacto com a realidade que se lhes é imposto ainda agora começou. 
Confesso que, ainda que trabalhando na área das Ciências da Linguagem, a norma não me interessa minimamente do ponto de vista técnico. Atafulhada em "mares de corpora" até há um ano, distraída "a contemplar a gravitação dos universais" na minha tese de mestrado e, mais recentemente, entretida "nas profundezas arqueológicas da língua", para aproveitar as palavras do texto de Ivo Castro, que servem de epígrafe a este post, o Acordo Ortográfico é um daqueles temas de difícil trato, que a mim só forçada pela necessidade prática me levanta curiosidade. 
A minha estratégia, portanto, começou por ser a lei do menor esforço (uma estratégia  tão válida como outra qualquer, devo dizer): continuar a usar a velha ortografia até que fosse forçada liminarmente a usar a nova, e eu duvidava seriamente que isso viesse a acontecer.  Mas a verdade é que aconteceu. Se do ponto de vista técnico a questão não me interessava particularmente, passou a interessar-me sobremaneira quando passou para o ponto de vista pessoal. O principal motivo relaciona-se com o facto absolutamente fundamental de eu ter a minha única filha a frequentar o ensino básico. Se para mim a questão resolvia-se com o princípio do menor esforço, com ela a questão complicava-se. Ela continuava a ter em casa os livros, que eu sempre lhe lera, na antiga grafia.  Não podia usar a lei do menor esforço quando todos os manuais, dicionários e outros materiais de apoio que ela usava adoptavam o Acordo Ortográfico. E, ainda que a ideia me divertisse e me fizesse pensar, não conseguiria actuar da mesma maneira que aquele pai que proibira que a filha fosse instruída na nova grafia.  Daí que a minha atitude para com o AO passou a basear-se, então, na lei do maior esforço: sempre que a minha filha lia ou escrevia um texto na minha presença, fazia questão de lhe explicar as duas grafias. Para já esta estratégia está resultar, mas devo dizer que me inquieta o facto de saber que a minha filha está a aprender a escrever neste período de transição. Inquieta-me porque tenho noção de que é dos 6 aos 10 anos que se formam as bases que nos acompanharão para a nossa vida. E para quem leva muito a peito as questões da identidade, este assunto é preocupante.
Eu não quero discutir os argumentos cruzados que se foram adensando sobre o Acordo. Outras pessoas já o fizeram, com maior substância do que eu poderia fazer neste blog.  Por trabalhar na área da Linguística sinto apenas necessidade de fazer uma ressalva acerca da questão da norma. E em relação a ela posso dizer, com segurança, que até o prescritivista mais empedernido irá aceitar que a principal função da Linguística enquanto ciência, hoje, é descrever a(s) língua(s) e não prescrever regras. Existe lugar na Linguística para o prescritivismo, mas tem um objectivo muito claro, que não assenta em juízos de valor. Transcrevo para aqui o comentário que escrevi no blog Chapa Branca (http://comunicacaochapabranca.com.br/?p=16866#respond), a respeito de um post sobre este mesmo tema:
"Há muito tempo que os linguistas aceitaram que a língua é um organismo vivo e que só tem existência pela boca (ou na caneta, ou teclado) dos seus falantes. Como bem diria um professor meu, a língua portuguesa é um amontoado de erros do latim. A língua hoje é estudada na perspectiva do descritivismo e não do normativismo; isso implica que o cientista da língua apenas descreve e analisa o que observa, não tem a função de criar normas. Mesmo o prescritivista mais empedernido vai aceitar que as ciências da linguagem devem acima de tudo estudar e analisar a língua e não ditar regras ou normas de bom funcionamento. Estas normas, quando existem, são adoptadas por imposições/decisões políticas, por políticas da língua. Por outro lado, também é verdade que é necessário um certo prescritivismo, especialmente no ensino, muito particularmente o ensino primário e básico; mas é preciso perceber os limites e, principalmente, o objectivo, desse prescritivismo. Há casos de excesso de prescritivismo absolutamente reprováveis. Pessoalmente, eu fico horrorizada com noções como ‘norma culta’, ‘norma padrão’ ou sequer ‘norma’. No entanto, entendo que há circunstâncias que, por força do hábito, tradição, consenso geral, motivos didácticos, nos pedem para usarmos determinadas convenções. A escrita científica, mais formal, até à escrita na Internet em blogs, redes sociais ou nas telecomunicações móveis, têm particularidades próprias e é bom ser bom conhecedor de todas essas particularidades (ou géneros linguísticos [...]). Isto tem, para mim, um único objectivo muito válido: permitir que todos se entendam (ou não). Claro que podes subverter ou ignorar (conscientemente ou não) as convenções, as regras e as normas do ‘bom funcionamento’ e misturar géneros, criar novos. [...]"
Como lia, há dias, num slideshare que me chegou através do blog The Cranky Linguist, e que deixo a seguir, os linguistas são, essencialmente, uns hippies. Sublinho as palavras dos slides 21, 22 e 23: 
"A maioria dos linguistas não são nazis da gramática.  Pensem em nós como hippies da linguagem, que ficam REALMENTE excitados com um p aspirado, ou a história de uma palavra, ou o uso de 'Dude' como uma saudação de género neutro." (tradução minha)
A imgem é simples, mas serve o propósito: os linguistas são gente cool cujo principal objectivo é, tão somente, ir observando e documentando as línguas tal como elas se lhes apresentam,  sem interferências, constrições ou confrangimentos.  Isto significa, de certa forma, que a norma é-lhes pouco interessante.  Assumo a indiferença que Ivo Castro retrata no texto que serve de epígrafe a este post. Como bem refere o autor, alguns linguistas entendem o papel de fixação da norma como uma "ocupação desqualificada". Posso estar a exagerar mas, dos investigadores que conheço que se dedicam ao estudo da língua, não há um que tome muito a sério a questão da norma. Conheço um especificamente que iria vociferar ao ouvir tal vocábulo. A verdade é que, com uma tal variedade de temas por explorar em matéria de estudo da língua, só com muito boa vontade e uma grande dose de paciência se interessam os linguistas pela questão da norma. Eu diria que a norma é matéria preferida de escritores que se dizem autorizados ou professores de  Língua Portuguesa (e como eu me lamento quando tenho de fazer esse papel). Numa excelente metáfora, Ivo Castro explica o que entende por norma: 
"dispositivo destinado a fornecer aos falantes uma plataforma um pouco mais estável e mais sólida que esse corpo fluido que é a língua - não é a de uma plataforma oceânica de extracção de petróleo, nem a de uma jangada, muito menos de pedra. A norma que temos em Portugal, e que chega se a soubermos utilizar, é como uma prancha de surf." (Ivo Castro, 2003, sublinhado meu)
Tenho a certeza que muitos linguistas subscreveriam esta metáfora. 
Aquilo que convencionalmente chamamos erro, ou desvio da norma, é, em Linguística, visto com curiosidade. Este desvio da norma é um excelente objecto de estudo, é terreno fértil para novas descobertas sobre a língua, sobre a sua variação e mudança, sobre a sua riqueza, e não motivo para apontar o dedo, diminuindo quem o fez. Como muito bem explicou John Lyons, já em 1968, o argumento purista da correcção linguística é simplesmente tautológico:
"Deveria ser evidente que não existem padrões absolutos de 'pureza' e 'correcção' na língua e que tais termos só podem ser interpretados em relação a algum padrão seleccionado previamente. Podemos dizer que um estrangeiro cometeu um erro porque ele disse algo que não seria dito por um falante nativo. Também podemos dizer, se quisermos, que um falante de um dialecto regional do inglês produziu uma forma 'incorreta' ou 'agramatical', porque esta forma não está em conformidade com os padrões do inglês standard, mas estamos a supor que ele deveria estar a falar inglês padrão naquela situação particular." (Lyons, 1969: 42, tradução minha)
A correcção linguística implica que todos os envolvidos numa situação de comunicação conheçam e queiram usar a norma. Uma vez que a norma é uma convenção (muitas vezes imposta à força e por coacção), a norma não pode servir para excluir ninguém. A norma serve, ou deveria servir, para permitir uma melhor comunicação e integração. Explicar como a norma pode ser manipulada e como tem servido, em Portugal e no mundo, para criar exclusão social até no próprio sistema de ensino obrigatório iria obrigar-me a uma longa argumentação. Fica para outro post, numa outra altura. Para já sublinho que ninguém deveria ser importunado por escrever/falar na forma como aprendeu a fazê-lo na sua infância
Sublinho, pois, que a norma é uma convenção. Pode haver argumentos mais ou menos técnicos para elaborar a norma mas ela é, essencialmente, uma decisão política. Mas que fazer para que os argumentos de ordem política não atropelem muito as questões técnicas, como me parece que aconteceu até aqui? Eu, pessoalmente, só vejo uma solução: corpora. Reconheço que em 1990 estávamos na pré-história dos estudos de corpora, principalmente em língua portuguesa, e a sensibilidade para com variantes regionais, dialectos e línguas minoritárias era inexistente. Mas hoje já não há desculpa alguma. A análise da língua através de conjuntos de textos (e texto aqui inclui também o oral) de uma dimensão suficientemente robusta que permita a diversidade e alcance, é uma condição sine qua non dos estudos linguísticos actuais e faz também todo o sentido quando nos debruçamos sobre o tema da norma. 
Temos hoje a matéria prima, temos as ferramentas, só falta mesmo a vontade política.

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Referências:

- José Pedro Machado (1995). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, Vol.IV, 7º Edição.
Ivo Castro (2003). "O linguista e a fixação da norma". Actas do XVIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa: APL, pp. 11-24. Disponível aqui.
- John Lyons (1969). Introduction to Theoretical Linguistics. London/New York: Cambridge University Press. 

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