Movimentos Sociais

Inspiração para 2012

00:07


Portugueses do mundo, inspirai-vos:

“Como figura internacional tenho a mesma eleição que a revista TIME: o protesto, precisamente porque ele vem nos antípodas do que eu acho que está a passar-se em Portugal, que é a diminuição intelectual de todos nós. [...] Quando o ministro Relvas [...] toma decisões unilaterais sobre coisas tão importantes como o serviço público sem que haja um único protesto cívico [...] isto é o fim da democracia [...]. É a aceitação de tudo; “nós já tomamos a decisão por vocês”. Ora isto cheira-me a quê? Eu já vivi no sistema antigo em que as pessoas tomavam a decisão por mim e me diziam o que é que eu devia fazer; nisto sou mais liberal que o Governo. E portanto, o protesto é para mim muito importante: Occupy Wall Street, o protesto árabe, totalmente inesperado [...]. E como quem já leu história, quem continua a ler história, coisa que estes governantes não fizeram, sabem que o inesperado acontece. E mais: sabem que quem comanda a História, de um modo kitsch ou não, como dizia o Kundera, são as massas, e o mundo vai mudar.”

Clara Ferreira Alves no Eixo do Mal, SIC Notícias (25/12/2011)


Comunismo

Slavoj Žižek sobre a crise da Esquerda

03:21


Vale a pena ler na íntegra a entrevista de Slavoj Žižek sobre a actual crise da Esquerda publicada no The Platypus Affiliated Society. Žižek fala dos movimentos sociais recentes, do seu papel, da sua linguagem e as suas falhas; analisa as velhas correntes de esquerda, as suas formas de luta, as suas fraquezas, e as suas vantagens. 
E, já agora, vale a pena também dar uma vista de olhos às páginas Crises of the Left
The Platypus Affiliated Society, que apresentam um fórum de discussão sobre os desafios da Esquerda actual, com disponibilização de textos relevantes que servem de tema para interessantes debates.
"The big task today is to avoid this, what Lacan called, with a beautiful term, the “narcissism of the lost cause.” You know, “We lost, but how beautifully we lost.” You fall in love with your own defeat, and, even worse, make of defeat a sign of authenticity. “We lost because life is cruel, but look at how beautiful it was,” etc. No. The same holds for ’68: We should find a way for Marxism or communist revolution to be something other than a detour between one and another stage of capitalism. This is the lesson of the 20th century. The lessons are only negative: We learn what not to do. This is very important. Maybe I’m wrong, but I don’t see positive lessons. I am an honest pessimist.
But, if we do nothing, it will be even a greater radical catastrophe. The true utopia is that things can go on indefinitely as they are. The crisis of 2008 made it seem like it was merely a lack of regulation and corrupted individuals. No, the crisis is different. Today we are approaching dangerous times. We cannot rely on any tradition. Left tradition has a tendency, when it takes power, to turn into brutal domination. How to break this deadlock between two sides that are, as Stalin would have put it, “both worse.”"

África

Ainda a RD Congo

00:49



Este post deveria ter sido escrito há algumas semanas atrás, no dia em que os resultados das eleições na RD Congo foram divulgados e em que surgiram acusações de fraude eleitoral, no dia em que muitos congoleses saíram à rua para protestar por eleições justas e democráticas e sofreram violência policial.
Não o fiz na altura e desde então muitos outros acontecimentos mais "mediáticos" acabaram por preencher a agenda nacional e internacional. De facto, esta semana foi fértil em acontecimentos notáveis, uns pela positiva, outros nem por isso. 
Vimos o ressurgimento dos protestos na Síria e o hastear da bandeira palestiniana na sede da UNESCO; ainda esta semana a revista TIME elegeu como personalidade do ano de 2011 o manifestante, numa clara homenagem aos movimentos sociais que se iniciaram na Tunísia e se estenderam à Praça Tahir, à Praça do Sol e chegaram às Américas, do Sul e do Norte, aos E.U.A., país a partir do qual a desobediência civil se transformou em objecto de estudo científico. Os mesmos E.U.A., que se auto-elogiam pela defesa das liberdades individuais, conseguiram, só nesta semana, a extraordinária proeza de aprovar a Indefinite detention Bill, ao mesmo tempo que congelavam a ajuda ao Paquistão, impunham novas sansões financeiras ao Irão e enfureciam os russos com as suas novas relações com a Geórgia. Por cá, Pedro Nuno Santos repetiu, a viva voz e para quem quis ouvir, o que muitos cidadãos portugueses vinham dizendo, há pelo menos um ano, em todas as redes sociais: e se não pagássemos a nossa dívida? Na voz de um deputado a mensagem tem outro peso. E não é que foi levada a sério! A voz da autoridade falou e todos se espantaram. Mas finalmente a mensagem passou. Teremos acordado, ou isto faz parte do circo da política nacional?
Com tanto que falar na agenda política nacional e internacional porque será, então, que insisto em falar na RD Congo? Que importância poderão ter umas eleições num país africano que vive em permanente guerra civil há quase duas décadas? É muito provável que, acaso eu não tivesse tropeçado no Burundi, por mera casualidade, dessas com que somos presenteados no decurso da nossa vida, hoje não estaria, certamente, a escrever sobre a RD Congo. Isto seria assim porque raramente nos chegam notícias do país. Da minha experiência de activismo na Amnistia Internacional, não me recordo um único apelo feito em nome de cidadãos congoleses. Não só o conflito na RD Congo é complexo para aparecer em cinco minutos de um telejornal, como não é suficientemente "apelativo" - o que quer que isso queira dizer - para fazer primeiras páginas de jornais. Da RD Congo temos como referência talvez o filme de Edward Zwick, Diamantes de Sangue, sobre o conflito de minerais, ou as reportagens sobre as violações em massa de milhares de mulheres congolesas. Alguns mais atentos saberão ainda que a RD Congo foi considerado pelas Nações Unidas o pior país do mundo para se nascer mulher. E mais nada. É só. Não nos chegam notícias de manifestações, movimentos sociais, repressões, violência, ao contrário do que acontece para o Egipto, a Líbia, a Síria, o Irão, a Rússia. E como não nos chegam as imagens, é como se elas não existissem; é como se o próprio país e toda a sua população deixassem de existir ou, pior, nunca tenham existido. 
Insisto, não fosse uma extraordinária casualidade, nem eu estaria a falar da RD Congo hoje. Só por mera casualidade aterramos em Bujumbura ou Kinshasa. Por mera causalidade, eu vivi no Burundi por quase nove meses, partilhei ali o mesmo sentimento de insegurança sentida pela população perante a impunidade e a violência. Todos os dias ouvia relatos de violações de direitos humanos e todos os dias fazia um esforço enorme para tentar perceber a razão da irracionalidade.  Quem conhece a história do genocídio no Ruanda sabe porque falo de Burundi quando o centro da minha atenção é a RD Congo e sabe que o conflito no centro de África é, seguramente, um dos mais sangrentos da nossa história recente. Incidentes que surjam ali, repercutem-se por todos os países vizinhos: Ruanda, Burundi, Uganda, Angola, etc. Sim, a Angola de Eduardo dos Santos, que partilha com o RD Congo a fronteira a sul e que, por essa pequena circunstância, tem já o seu nome inscrito na  história dos conflitos da RD Congo (http://www.economist.com/node/21525451http://www.congoplanet.com/article.jsp?id=45261514). Pois é, também Angola, com quem Portugal mantém harmoniosas relações diplomáticas, esteve profundamente envolvida em violações de direitos humanos na RD Congo. Como vêem, a RD Congo também é problema nosso.
Ontem o Supremo Tribunal do Congo confirmou os resultados das eleições, contra todas as vozes que apontavam irregularidades e fraudes.  No final do dia o Senador americano Coons  expunha num comunicado a seguinte mensagem: 
"This was clearly not a well-run election, as reported by observers from the European Union, Carter Center, and Congolese Catholic Church.  Congolese authorities must engage in a thorough and transparent review of the results that will shed light on whether irregularities were caused by a lack of organization or fraud, [...]""We are increasingly concerned that the election irregularities are a setback for already weak systems of governance in Congo, and may further destabilize the DRC and lead to an escalation of violence.  All sides should engage in dialogue about next steps and consider establishing a formal mediation process with the support of the international community.  We call on President Kabila to direct his security forces to protect the Congolese people, and work with Mr. Tshisekedi to resolve their disagreements in a way that will restore credibility to the process." (Fonte: United States Senate).
Não sei o que se passará na RD Congo nestes próximos dias, mas sem a atenção da comunidade internacional e sem uma mediação empenhada para assegurar eleições justas e democráticas, o país ficará à beira do caos. Como referiu uma jornalista na semana passada, "nowhere are crises more predictable than in the Democratic Republic of the Congo" (http://www.foreignpolicy.com/).
Deixo aqui o apelo que a organização Friends of the Congo fez hoje aos líderes mundiais.   Espero que desta vez a diplomacia resulte. Se não resultar, preparem-se para violência... de novo:   

"On November 28, 2011, the Democratic Republic of Congo (DRC) held its second presidential and parliamentary elections since the devastating war that began in 1996 and continues to claim lives in the eastern part of the country. Assassinations, intimidation, and other human rights violations have been documented since the beginning of the electoral process. Human Rights Watch reported that of the 18 people dead as a result of electoral violence on November 26, the majority of those killed were shot dead by President Kabila’s Republican Guard soldiers in Kinshasa. 
On December 9, 2011, the preliminary presidential election results were announced. The electoral commission reported that Joseph Kabila was the leading candidate with 8,880,944 votes, or 49% of the votes cast. He was followed by Etienne Tshisekedi with 5,864,775 or 32%. 
The Archbishop of the Catholic Church in Kinshasa, Cardinal L. Monsengwo Pasina says the results correspond neither to truth nor justice. The Carter Center who observed the elections said that they lacked credibility. The Carter Center also observed that 2,000 polling station results numbering 750,000 votes were missing in Kinshasa alone. The European Union deplored the lack of transparency, and the irregularities in the collection, compilation and publication of the results. They also noted that results from 4,875 polling stations totaling 1.6 million votes were missing. 
Steps taken by the Kabila regime ranging from the change in the constitution, appointment of a member of his party and close adviser as president of the electoral commission, and the stacking of the Supreme Court at the outset of the launch of the electoral campaign all strongly suggest a premeditated attempt to rig the elections or produce a fraudulent outcome. 
In light of the acute political crisis in which the Congo is trapped, Friends of the Congo recommends that world leaders get fully engaged immediately and advance the following:
1. Refrain from recognizing Joseph Kabila as winner of the 2011 presidential election.
2. Facilitate a high-level mediation process made up of the Southern African Development Community, the African Union, The European Union, The United Nations, select respected former African heads of states and representatives from the United States, England and China.
3. Assure that the will of the people is accurately reflected in the legislative elections.
It is critical that the current political crisis in the Congo is given the attention it deserves with the particular focus on making sure that the will of the Congolese people is respected."

Friends of the Congo
Washington, DC
December 17, 2011

Actualização: 

África

Na wewe

16:17


Encontrei este filme em Bruxelas na semana passada. 'Na wewe', que significa 'tu também' em kirundi, a língua oficial do Burundi, é, tanto quanto sei, o único filme feito que retrata a violenta guerra civil no Burundi, desencadeada pelo genocídio no Ruanda. O filme é uma curta-metragem de perto de 20 minutos, tem como cenário o Burundi do ano de 1994 e foca os conflitos étnicos  entre as duas principais etnias do país: os tutsis e os hutus. O genocídio ruandês tinha já sido retratado no cinema em filmes como Hotel Ruanda, mas pouco ou nada havia sido feito acerca de como o conflito de 1994 se propagou para os países vizinhos do Ruanda, como o Burundi ou a RD Congo. 
'Na wewe' ganhou mais de uma dezena de prémios internacionais e foi nomeado para os Óscares de 2011.

Direitos

"A política não se faz em Braga"

10:00



É preciso ter nascido numa outra cidade de Portugal que não seja Lisboa, Porto e Coimbra, para poder perceber o estado de espírito de alguém que ouve uma frase como aquela que dá título a este post. Em mim esta frase causa-me, no mínimo, perplexidade. Não interessa o contexto onde ela foi proferida, mas interessa todo o conjunto de argumentos que se podem apontar acerca de como a frase é inusitada.
Em primeiro lugar, importa esclarecer o conceito de política de que estamos a falar. O conceito de política é extremamente vasto e controverso. Ela pode ser vista, de um ponto de vista muito particular, como uma actividade pública:
"[...] does ‘politics’ refer to a particular way in which rules are made, preserved or amended (that is, peacefully, by debate), or to all such processes? Similarly, is politics practised in all social contexts and institutions, or only in certain ones (that is, government and public life)?" Andrew Heywood, 2007. Politics. Palgrave Macmillan.
Andrew Heywood acaba por defini-la como a "actividade através da qual as pessoas fazem, preservam e emendam as regras gerais através das quais elas vivem". Hannah Arendt define-a como a mais importante forma de actividade humana, na medida em que envolve interacção entre cidadãos livres e iguais e Aristóteles já argumentava que o homem é um animal político. Daqui se depreende que eu posso fazer política de mil e uma maneiras e em mil e um lugares: a escrever num blog, a fazer pirataria online, a assistir a uma reunião, ou sentada à mesa de um bar. Deste ponto de vista a política faz-se em todo o lado e está em todo o lugar: desde o lamento da senhora reformada sobre o corte nas pensões, ao poema que um autor escreve, até aos protestos de rua de diferentes camadas da população. Faz-se política fazendo greve ou optando pelo silêncio numa discussão. A política não se circunscreve ao espaço fechado da máquina governamental ou dos partidos políticos. A política é "um traço inevitável da condição humana" (Heywood, op. cit).
O segundo ponto que quero referir é o preconceito que advém do conceito de periferia. Fico perplexa quando ficamos incomodados com o facto de se falar de Portugal, Espanha, Itália, Grécia como países periféricos da Europa, mas não nos incomodamos com a centralização do poder no nosso próprio país. Como é possível que fiquemos indignados com a situação de periferia de Portugal na Europa, mas não fazemos um mínimo de esforço para perceber as regiões periféricas dentro do nosso país. É, no mínimo, paradoxal. É nestas alturas que eu, sendo bracarense, me questiono sobre se não seria preferível vivermos num estado Galiza-Minho. Como eu entendo, nestas alturas, os meus amigos galegos que me falam sobre o preconceito que sofrem! Veja-se, a título de exemplo, a polémica que surgiu na Galiza quando a vereadora da cultura da Corunha, Ana Fernández, criticou o governo municipal anterior por programar coisas "demasiado gallegas".
Num momento em que se fala de reforma da Administração Local, eu ponho-me a pensar, quando ouço comentários como estes, que faz cada vez mais sentido pensar novamente a questão da regionalização. Há dias, o presidente do Conselho Económico e Social (CES) defendia a transferência de serviços públicos para o interior (http://aeiou.visao.pt/). Na semana passada foi a vez do historiador Gaspar Martins Pereira defender que uma reforma administrativa deveria passar pela inclusão da regionalização, sob pena de essa reforma ficar "seriamente amputada" (Expresso). João Paulo Barbosa de Melo, por sua vez, veio, também na semana passada, afirmar que "[a regionalização] é sempre apresentada como uma coisa despesista, que torna o país mais difícil de governar. Se calhar é verdade, fica mais difícil de governar a partir de Lisboa mas tenho a certeza que ficaria mais bem governado" (http://www.dinheirovivo.pt/). Eric Juliana, a propósito do mesmo tema, escrevia, em 2005, as seguintes palavras: 
“…as Autonomías contribuiram notavelmente para a modernização de Espanha, adiantando-se em certa medida ao futuro. A Europa tende claramente para a descentralização. Os alemães, forçados, como uma vacina contra um IV Reich; os britânicos, campeões do senso comum, conseguiram encarrilar o mal-estar da Escócia; os ilatianos continuam a bater na mesma tecla mas avançam para um certo esquema federal. Em Portugal volta a colocar-se a questão da regionalização; e a complexa crise da França é também a crise do centralismo. Sem as Autonomías, a Espanha não teria aproveitado com tanta eficácia os fundos de coesão e outras ajudas europeias. Não há dúvida de que as autonomias fizeram bem à Espanha.” Enric Juliana (2005). La España de los Pingüinos. Una visión antibalcánica del porvenir español: la concordia es posibleBarcelona, Destino, p. 9. Via blog de Álvaro Iriarte S..
Como anarquista não acredito que os problemas regionais se resolvam através de um maior poder às instituições governativas. Há outras formas de fazer política que não se restringem a estes espaços. No entanto, a descentralização aproxima os cidadãos da vida política e garante-lhes uma maior intervenção nos assuntos que diariamente os preocupam, além de que é mais fácil garantir que os interesses regionais não sejam sobrepostos pelos interesses centrais. 
Há tempos, escrevia aqui neste blog, a propósito da conferência de Giles Lipovetsky no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, que quanto mais se insiste numa cultura global, mais cresce o sentimento de identidade e nacionalismo: 
Há ainda um outro ponto positivo que advém da cultura-mundo: a revitalização das identidades. Quanto mais global se torna o mundo, maior é o investimento nas identidades particulares através da reabilitação e revalorização do património, da história, da cultura, da religião, da gastronomia, da língua, e mesmo dos afectos e da forma de os expressar. Vemos novos nacionalismos, para o bem e para o mal.
Se este sentimento de pertença e identidade não for aproveitado de forma positiva, irá degenerar em extremismos como aqueles que se têm vindo a verificar um pouco por toda a Europa. Veja-se a este propósito o dossier da Presseurop sobre a extrema-direita na Europa, disponível aqui.

Literatura

"Não sei para onde vou - Sei que não vou por aí!"

00:10

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!


José Régio

Humanidades

Universidades, financiamento público e interesse público (Parte 2)

02:27




Depois de há dois dias atrás me ter lamentado sobre o estado das Humanidades e das Ciências Sociais, hoje tropecei numa notícia que vem trazer alguma esperança para estas duas áreas.  Através deste artigo chego ao discurso de Máire Geoghegan-Quinn, Comissária Europeia para a Investigação, Inovação e Ciência. O discurso foi proferido a 10 de Novembro, na Academia Britânica, e foca a preocupação e interesse da União Europeia no papel das Humanidades e das Ciências Sociais. O título do discurso de Geoghegan-Quinn é elucidativo: "The future of Social Sciences and Humanities in Horizon 2020". A Comissária solidarizou-se com a preocupação dos académicos acerca do futuro das Humanidades e das Ciências Sociais, assegurou que a Comissão Europeia partilha das mesmas preocupações e que irá continuar a garantir financiamento à investigação nestas áreas. 

"The European economy, and indeed the world economy, are facing threats that have not been seen for several generations. Energy and resources are becoming scarcer and more expensive as we consume more. The internet and social networking are changing the way we work, interact and communicate.

These are just some of the challenges that we face. We need the Social Sciences and Humanities to examine, interpret and understand these challenges and point us to answers.

This has never been more true than today – for example, we look to these disciplines to explain why and how the current economic crisis happened, to identify its social impacts and to discern future trends.

We cannot rise to the challenges facing Europe without deepening and updating our knowledge of the very economy, society and culture we live in, and without understanding Europe and its relationship with the rest of the world. [...]   
We have heard the concerns expressed by this Academy and others about the place of the Social Sciences and Humanities in future European funding for research and innovation.

Let me assure you that the European Commission shares the goals of the British Academy to inspire, recognise and support excellence in the social sciences and humanities and to champion their role and value.

Let me also assure you that future funding at the European level will provide significant space for social sciences and humanities research."

Geoghegan-Quinn destacou também a importância do papel que a União Europeia tem no mundo, no campo das Humanidades e Ciências Sociais, e sublinhou ainda o papel da interdisciplinaridade e da pesquisa colaborativa. 

Humanidades

Universidades, financiamento público e interesse público (Parte 1)

00:00

 "No Brasil, a maior parte das pesquisas acadêmicas é financiada com recursos públicos. Em algumas áreas, como as ciências humanas e sociais, o financiamento público chega a quase 100%. De uma pesquisa assim custeada, espera-se que contribua para o entendimento e/ou solução dos grandes dilemas vividos pela população que a financia. Disse dilemas e não problemas, justamente para fugir da idéia de que o financiamento público só é legítimo para aquelas pesquisas que tragam soluções para os problemas do cotidiano da população. Afinal, como já dizia o poeta,"a gente não quer só comida..." e um sonho pode, tanto quanto a falta de comida, trazer à baila os grandes dilemas do humano." Luciano Mendes de Faria Filho,"A pesquisa acadêmica e as políticas públicas no Brasil". In Jornal da Ciência, 23 de Novembro de 2011. URL: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=80217

Ontem foi o segundo e último dia das I Jornadas Internacionais: corpora e tradução, um encontro académico sobre corpora e tradução, realizado no âmbito do Projecto Per-Fide, na Universidade do Minho. Este post não vem a respeito dos assuntos académicos abordados no encontro, mas de um comentário que ouvi, a alguns dos palestrantes, no intervalo das comunicações. O comentário dizia respeito à pressão, cada vez mais forte, que as universidades públicas sofrem no sentido de estabelecer ligações estreitas com empresas privadas e o problema que isso representa para áreas académicas menos 'comercializáveis'. O tema parece, de facto, estar na ordem do dia, com a cada vez maior limitação de verbas, por parte do Estado, às universidades públicas. A FCT, só para dar um exemplo, incentiva a candidatura a bolsas de doutoramento em empresas e vemos, cada vez mais, as universidades a promover encontros entre empresas e estudantes, dentro do espaço da universidade. 


Já durante a minha licenciatura, em finais dos anos 90, numa cadeira intitulada Administração Escolar, se apresentava o paradigma da universidade-empresa sem grandes questionamentos. Confesso que a primeira vez que me deparei na prática com esta ligação foi num congresso internacional. O que me inquietou no programa do congresso foi o facto de membros de empresas de software privado e de editoras privadas serem apresentados num congresso científico com o mesmo espaço que os restantes congressistas, fossem eles professores, mestrandos ou doutorandos. Misturar academia com empresas privadas parece-me, hoje, o mesmo que misturar ciência com interesses corporativos e financeiros. A ligação, amplamente aceite e inquestionável, parece-me, no mínimo, perigosa. No caso da Linguística Aplicada, como áreas como a Tradução, a Lexicografia e a criação de corpora, a ligação entre academia e interesses económicos não me parece verdadeiramente ameaçadora para o interesse da sociedade geral, mas se pensarmos na área da Medicina, da Sociologia ou  do Direito a questão torna-se prioritária.
Todos sabemos o que é que acontece quando deixamos que as empresas invadam o espaço universitário e quando o próprio Estado se demite do seu papel de promotor de um direito universal e deixa esse papel à sociedade e empresas privadas. Acontece que áreas académicas não rentáveis são relegadas para segundo plano. A verdade é que não é só um problema de divisão disciplinar. O problema acontece mesmo no seio de uma mesma disciplina: as sub-áreas mais teóricas, com uma componente mais conceptual, são suplantadas pelas sub-áreas mais práticas e que produzem resultados tangíveis com um produto final, vendável. Hoje as ciências puras sofrem o mesmo preconceito que há pelo menos dez anos atrás se impunha às componentes práticas dessas ciências. Lembro-me perfeitamente de ler artigos académicos a questionar a inclusão da Lexicografia na área da Linguística; a Lexicografia não era suficientemente científica, diziam. Hoje acontece o contrário: são as áreas mais práticas que dispensam as áreas mais teóricas e parece até heresia fazer investigação hoje exclusivamente na componente teórica. É curioso que, por exemplo, vejamos linguistas interessados em construir glossários, dicionários terminológicos, ontologias, etc, em áreas como a Biomedicina, Direito, Economia, etc, e ainda não conseguimos construir um simples dicionário terminológico actualizado da nossa área. O único dicionário terminológico de Linguística existente em português para consulta na Internet é o Dicionário de Termos Linguísticosda Associação de Informação Terminológica, que se apresenta num simples documento PDF Seremos tão pouco significantes para nós mesmos?
Não estou a defender a protecção de um ponto de vista em detrimento de outro, acho apenas que a balança não está equilibrada. E, na verdade, da maneira como as directivas governamentais estão a ser redigidas, receio bem que haja disciplinas que deixem até de fazer parte dos pratos da balança.





Nesta lógica, só as áreas que visivelmente geram lucro serão cobiça das empresas e objecto do seu financiamento. E acabaremos no que já se tem começado a assistir: o desinvestimento nas áreas como as Humanidades ou as Ciências Sociais e nas componentes teóricas tout cour. Muitos perguntarão: e daí? É preciso adaptação. Daí que estaremos a desenhar universidades que se afastam cada vez mais dos desígnios para que foram criadas: permitir o desenvolvimento da ciência em todas as suas áreas, harmoniosamente. 
Ontem, no mesmo congresso, tive a oportunidade de ouvir, mais uma vez, o lamento de um estudante de Linguística de que não há empregos na área e que é preciso apostar em áreas que dão emprego. E pus-me a pensar acerca das áreas que geram emprego e, obviamente, só podia chegar à mesma conclusão de sempre: se temos as empresas dentro da universidade, o que podemos esperar do mercado de trabalho? Se apenas há investimento financeiro em determinadas áreas, não podemos esperar que fora da universidade o capital seja mais benevolente. As conclusões são fáceis de tirar: quanto maior o investimento, maior a oferta de trabalho. É um círculo vicioso. Não é que as áreas das Humanidades tenham uma maior taxa de desempregados por si mesmas, é que houve um total desinvestimento nessa área, ao ponto de reduzirem os empregos que essas mesmas áreas poderiam gerar. Não há apoio à publicação, não há apoio à cultura, não há investimento em espaços de debate, apoio a congressos e eventos nas áreas das Humanidades,  etc. Se não há esse investimento, deixa de haver 'público'.
Hoje, nem de propósito, deparo-me com o artigo do Rui Tavares sobre um artigo de Paul Mason que fala sobre os motivos para a crise económica ter estalado em todo o mundo. Mason aponta como causa primeira o licenciado desempregado. A resposta do Rui parece-me clara e encaixa bem no tema deste post. O Rui realça que esse licenciado desempregado ou precário de hoje não está sozinho. Há um facto fundamental que une todas as camadas da população: a certeza de que a promiscuidade entre o mercado e a política "fez de todos eles (de todos nós) descartáveis".
"Considerem os seguintes sintomas dessa realidade. A CNN vai despedir 50 jornalistas*, principalmente de imagem, para usar material recolhido pelos amadores. Pela primeira vez, a automação começa a substituir trabalho qualificado e não só braçal. Uma subida nas taxas de juro faz substituir políticos eleitos por tecnocratas" (Rui Tavares, "A verdadeira crise")
Desengane-se quem acha que nunca vai chegar a sua vez. As desculpas são enormes: a idade, o género, a educação, a falta dela, a qualificação, a falta dela, a família, a falta dela, a modernização, a rentabilização de custos, a quebra de lucros, a dívida, etc, etc, etc. 
"Isto acontece quando poderíamos estar tão perto de conquistar velhos sonhos da humanidade: usar a educação contra a ignorância, o acesso à informação para o exercício da democracia, a automação contra o trabalho embrutecedor. Mas as conquistas não caem do céu." (Rui Tavares, "A verdadeira crise")


Brent Lang at TheWrap, "CNN Lays Off 50 Staffers After Employee Appreciation Week", 11 Nov. 2011

África

Eleições na República Democrática do Congo

13:31



Imagem: Wikipedia

No dia 28 de Novembro, esta segunda-feira, haverá eleições na República Democrática do Congo. O sítio da Embaixada Portuguesa em Kinshasa na Internet abre com uma advertência aos viajantes para que não viagem para o país. Jornalistas um pouco por todo o mundo alertam para os perigos de as fraudes eleitorais incendiarem uma onda de protestos que, seguramente, acabarão refreados com violência. 
O RNW Africa fala em "eleições caóticas", denunciando a ausência de listas de votantes,  de urnas, de cédulas ou instruções para os eleitores,  a apenas poucos dias das eleições. A mesma fonte informa que se tem verificado também confusão na localização das urnas: há assembleias de voto que deveriam existir e não existem e vice-versa.
Um jornalista escreve no The New Your Times que um relatório das Nações Unidas denuncia que milícias liderados por candidatos ao parlamento têm violado e amedrontado a população para assim conseguir votos. O jornalista cita ainda o relatório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos que fala em "intimidação, ameaças, incitamento, prisões arbitrárias e violência" (vd. o vídeo abaixo).
Para desestabilizar ainda mais o processo eleitoral, interesses estrangeiros têm sido acusados de financiar o partido do governo.  

Para saber mais sobre o Congo e sobre o processo eleitoral deste ano, sugiro o sítio da BBC dedicado às eleições no país: http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-15775445.

Identidade

Da universalidade

18:29

Há um assunto com que me deparo recorrentemente, que abarca uma série de áreas às quais estou ligada, ou profissionalmente ou por contingências da minha formação académica. Estou a falar da universalidade, que se liga a áreas tão diversas como a Filosofia, a Educação, a Psicologia, a Linguística, o Direito, a Sociologia, a Política, etc. Muitas mais áreas caberiam aqui, mas estas são exemplificativas da diversidade que o tema  gera. 
Para quem, como eu, trabalha na área da Linguística, muito particularmente na área da Linguística Aplicada: Lexicografia, Tradução e Ensino de línguas, o tema surge não raras vezes, e aparece com dois pólos opostos. Por um lado temos os universais linguísticos, que são conceitos comuns a a várias línguas e facilmente entendidos por falantes de línguas e culturas diferentes, por outro lado temos os tipos, que podemos considerar conceitos específicos de determinada língua e cultura, incapazes de ser transferidos para outras línguas e culturas e, por isso, impossíveis de traduzir (vd. B. Comrie, Language universals and linguistic typology). Há teorias linguísticas que defendem ambos os pólos, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático. Se por um lado os universais são mais facilmente aceites em sub-áreas da Linguística como a Sintaxe e a Fonologia (temos como exemplo o Alfabeto Fonético Internacional), na Semântica, por outro lado, a discussão alarga-se. Deixem dar-me um exemplo muito usado: há teóricos que consideram que a palavra "saudade" em português não tem tradução para outra língua, enquanto que outros teóricos dirão que, embora a palavra não possa ser traduzida por uma outra palavra numa outra língua, pode, no entanto, ser traduzida através de uma expressão ou definição. A discussão na área é visceral. Na minha opinião, muitas destas discussões caem no erro básico de confundir a unidade lexical (a palavra em si, o significante) e o referente ou conceito (aquilo que a palavra designa, ou o significado). Mas ainda que possamos distinguir os dois conceitos à partida, a discussão entra por caminhos mais complexos e acaba com cada linguista a definir para si mesmo o que entende por unidade lexical e referente/conceito, sem que haja um consenso generalizado. Assim se faz ciência na área da linguagem: discutindo conceitos. Na minha muito humilde opinião, acredito que tudo se traduz e pode ser comunicado. Acredito que não há palavra, pensamento, texto que não possa ser decifrado, traduzido e partilhado. Do ponto de vista semântico, podemos acreditar que o léxico mude de língua para língua, mas, em última análise, o referente, aquilo a que o significado se refere, tem necessariamente de ter uma base comum, ou não fossemos nós todos humanos.
Ora a universalidade também é tema recorrente em áreas como a Psicologia, a Sociologia, o Direito e a Filosofia. Nestas áreas, tal como na Linguística, também se discute a universalidade dos conceitos. O que me interessa para este post hoje é a universalidade dos direitos. Num post já bastante antigo, com o título "Dos direitos humanos" aqui neste blog, me debruçava sobre o tema. Na altura ele vinha a propósito das declarações de Danielle Bleitrach sobre a questão do Tibete. Hoje o tema vem a propósito dos movimentos sociais recentes. Se a discussão na área da Linguística a universalidade não tem consequências muito visíveis do ponto de vista social e político - a não ser na questão do Multilinguismo e na defesa de políticas de língua, que determinam a autonomia identitária de determinadas populações (veja-se, a título de exemplo, as línguas das comunidades autónomas na Espanha) -  na área do Direito ela tem repercussões práticas muito visíveis. As leis são elaboradas a partir de ideologias políticas. Tenho a certeza que devem ter sido escritos tratados sobre o conceito de "bem comum" e tenho a certeza de que a universalidade dos direitos é assunto recorrente nos cursos das faculdades de Direito, mas ela deverá ser o fundamento das discussões políticas actuais. Existirão denominadores comuns para os direitos humanos? Existem imperativos categóricos que devem servir de base à legislação sobre direitos humanos? Em que princípios se baseiam as leis? Estas são questões importantes que fazem sentido serem discutidas num mundo cada vez mais global. 
Há tempos, enquanto me debruçava sobre o tema deste post, fui descobrir, nas estantes de casa dos meus pais, um livro que fazia parte da bibliografia da cadeira de Psicologia quando andava no quarto ano da minha licenciatura em Ensino de Línguas e Literaturas Modernas. Já lá vão mais de 12 anos, e a data da primeira edição do livro data do final dos anos 70 - e é necessário contextualizar o livro historicamente -, mas eu considero que o livro apresenta alguns conceitos importantes, na falta de referência mais actual. O livro intitula-se Psicologia do Adolescente, tem como autores N. A. Sprinthall e W. A. Collins, e conta com edição portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian (edição de 1994). O livro é um manual para professores sobre os processos  de  desenvolvimento que ocorrem durante o período da adolescência. O capítulo que me interessa para o tema dos universais é o capítulo 6, sobre o juízo moral, que eu chamaria hoje ética, e o desenvolvimento dos valores. O capítulo dedicado a este tema não é um manual de boas maneiras para adolescentes, se assim fosse não o teria trazido para aqui, é antes um quadro de referência que explica a forma como se desenvolve a nossa consciência moral e os estádios pelos quais ela passa. Os autores fazem especial referência aos estádios de desenvolvimento moral de L. Kohklberg que, como referem os autores, "são sistemas de pensamento, isto é, sistemas que descrevem como os indivíduos processam e raciocinam sobre questões relativas ao domínio moral e aos valores" (p. 248-249).


Imagem:  N. A. Sprinthall e W. A. Collins, Psicologia do Adolescente, FCG: 1994, p. 247

Os estádios pré-convencionais (1 e 2) desenvolvem-se  por volta dos 10 anos, independentemente do meio do qual provém a criança; os estádios convencionais (3 e 4) predominam aos 16 anos. Por volta dos 20 e os 22 anos, surgem evidências do estádio 4. Os estádios 5 e 6 seriam estádios reservados à idade adulta, embora nem todos os indivíduos os desenvolvam. Importa referir que, como defendem os autores, estes estádios não são lineares, apresentam progressos e recuos e podem até manifestar-se num indivíduo em diferentes áreas da sua vida e para diferentes problemas com que se depara na sua vida quotidiana. Embora os autores não o afirmem, arrisco dizer que muitos adultos não chegam a evoluir para o nível superior ao 2 e muitas crianças de 10 anos conseguem raciocinar moralmente ao nível 5 ou 6. Mas mais do que relatar os diferentes estádios de Kohklberg, é importante referir um ponto curioso: é que o estádio de desenvolvimento moral está de certa forma relacionado com o comportamento real em situações concretas do dia-a-dia. Isto significa que os indivíduos tendem a agir de acordo com os seus valores, em contextos específicos da sua vida. É também importante deixar aqui, para o tema deste post, um estudo levado a cabo por Alberta Nassi sobre os estádios de Kohklberg. Nassi analisou um grupo de estudantes  da Universidade da Califórnia em Berkeley durante quinze anos e as conclusões foram surpreendentes: 
"Entre 1964 e 1965, esta instituição (e outras) encontravam-se numa fase de agitação devido ao uso da desobediência civil como forma de pôr em causa a autoridade governamental e devido ao envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietname. Muitos estudantes que pertenciam a uma organização intitulada Free Speech Movement (FMS) entraram, activamente, em  confronto com as dimensões éticas e morais da política  nacional americana [...] formando marchas de protesto e praticando outros actos de desobediência civil devido aos quais alguns dos manifestantes foram presos. Os dados da investigação realizada nessa altura indicaram que muitos desses estudantes  apresentavam um raciocínio baseado em princípios morais (estádios 5 e 6), na classificação de Kohlberg" (N. A. Sprinthall e W. A. Collins, Psicologia do Adolescente, FCG: 1994, p. 287-288).
O que aconteceu passados 15 anos surpreendeu Nassi e alguns observadores da altura que comentavam que aqueles estudantes iriam desistir do seu idealismo, mais cedo ou mais tarde:
"para além de continuarem idealistas e de se dedicarem a questões de justiça social, cerca de 70% dos líderes estudantis do FMS foram classificados no nível dos princípios na escala de juízo moral de Kohlberg. [...] Para além disso, os líderes do FMS mostraram uma maior tendência para escolherem profissões de carácter humanitário, em oposição à iniciativa privada. [...]." (Op. cit, p. 288-289).
Os autores são contundentes a afirmar que os "indivíduos [...] que apresentam um juízo moral ao nível dos princípios [estádio 5  e 6], habitualmente, não retrocedem e não desistem do seu idealismo. Mantém-se, assim, a relação entre este nível de raciocínio e o comportamento real". (Op. Cit., p. 289) De referir que os estádios 5 e 6 são os estádios mais elevados de raciocínio moral.
A analogia que quero fazer entre o estudo de Nassi e os movimentos sociais recentes é evidente. É importante também sublinhar a caracterização que Kohklberg faz do estádio 6, o estádio mais elevado do juízo moral:
"Estádio 6: Orientação para uma tomada de consciência ou para princípios, não apenas para as regras sociais impostas, mas para princípios ligados às escolhas que apelam para uma universalidade e consciência lógicas; a consciência é um agente director, juntamente com o respeito e a confiança mútuos." (Op. Cit., p. 247, sublinhado meu)
Quem leu o meu post de ontem sabe que este post de hoje é mais uma resposta ao artigo de Zygmunt Bauman no El País. Os jovens destes movimentos sociais recentes (desde os 15M, aos Occupy Wallstreet aos Indignados), não só sabem do que falam como sabem exactamente o que querem. Rui Tavares, eurodeputado português pelo Bloco de Esquerda, resumia em três pontos as suas aspirações: 
"1. é possível, e absolutamente vital, inverter a relação de poder entre os estados e a finança capitalista. 2. o sistema político-partidário falhou nessa missão - mesmo os partidos de oposição, que podem ter razão no conteúdo, mas que insistem na forma e na maneira autoritária e hierárquica de fazer política. 3. se o sistema financeiro sequestrou os nossos governos, os povos do mundo terão de contar uns com os outros - e hoje estão mais informados e interligados que nunca." (Rui Tavares, A Demoglobalização).
Para tratar destes jovens de hoje a sociedade tem duas opções: ou se eleva ao nível dos seus princípios e os trata horizontalmente, ou retrocede em valores e ignora estes jovens pelo uso da força. Parafraseando Raimon, ells no són d'aquest món.

Dos movimentos sociais recentes

16:39



‎"Without education, we are in a horrible and deadly danger of taking educated people seriously." 
Chesterton

Lia há pouco o artigo "El 15 - M es emocional, le falta pensamiento" do El País com as reflexões de Zygmunt Bauman e lembrei-me do desabafo de Pedro Pereira Neto há um dia atrás na sua página do Facebook: 
"Há nestes legítimos protestos uma dimensão que me tira do sério: atitudes que contribuem directamente - como se fosse necessária ajuda nesse capítulo - para desvalorizar nos media as razões do protesto, o perfil do manifestante, e a alternativa que apresenta. Por que é dado aos mais verbalmente infelizes o megafone, e por que razão há manifestantes que agem como se estivessem num festival de música?"
Não tenho nada contra a forma festiva que alguns manifestantes adoptam nas manifestações - nem a festividade é sinal de falta de raciocínio ou engajamento nem a seriedade dá inteligência a quem quer que seja - mas sublinho a pergunta do Pedro: porque é que são os mais verbalmente infelizes a usar o megafone e a tomar da palavra? Mas a pergunta a ser feita não é esta. Infelizmente, os media mainstream aproveitam os raros 5 minutos de infantilidade de poucos, porque os há, para fazerem o retrato de todo um movimento. Quem estiver disposto a disponibilizar um pouco do seu tempo a ouvir estas assembeias populares vai aperceber-se de que nem tudo se resume a 5 minutos de infantilidade. Veja-se, a título de exemplo, o que se passou na assembleia popular de 24 de Maio, em Lisboa:


A solução não é negar o megafone aos verbalmente infelizes - porque o que distingue estes movimentos sociais é a pluralidade de vozes, e até a infantilidade grosseira cabe ali - a solução é invadir as praças, as assembleias populares, onde quer que elas se materializem, com os verdadeiros argumentos e soluções e criar espaços físicos ou virtuais para se debaterem as questões que verdadeiramente importam, tanto do ponto de vista teórico, como do ponto de vista prático.  E, por fim, divulgá-los o mais possível, através de todos os meios à disposição. O debate não tem de ser feito de megafone em punho, mas tem de ser feito. Agora que o movimento já tem a atenção que merece, importa sentar e construir, para que não se concretize o vaticínio de Zygmunt Bauman:  
"La modernidad líquida se expresa, obviamente, en su falta de solidez y de fijeza. Nada se halla lo suficientemente determinado. Ni las ideas, ni los amores, ni los empleos, ni el 15-M. Por eso teme que tal arrebato acabe también, finalmente, “en nada”. No es seguro, pero siendo líquido, ¿cómo no pensar en la evaporación?"
Poucos politólogos, sociólogos, economistas profissionais farão parte dos movimentos sociais. Infelizmente, ao contrário do que acontece com Zygmunt Bauman, não pagam aos manifestantes para fazerem análises políticas, económicas e sociológicas e para apresentarem soluções. Os manifestantes contam apenas com eles mesmos e com o seu escasso tempo e recursos.  Esse é o seu grande desafio, mas é também a sua maior força: não obedecem a agendas políticas nem dependem de interesses económicos.
Já agora, sugiro aos comentadores políticos, sociólogos e jornalistas profissionais, que saiam da sua torre de marfim e desçam às ruas. Percam algum tempo a ouvir o que as pessoas estão a dizer e vejam o que elas estão a fazer e criem uma opinião apenas quando ouvirem todas as vozes e estiverem informados sobre todos os lados da questão.

Occupy Movement

16:39


 



Ainda é cedo para perceber o futuro e as consequências dos movimentos sociais que se têm adensado um pouco por todo o mundo. Para aqueles que se perguntam muitas vezes o que é que estes movimentos reivindicam,  Chris Hedges, no artigo "Why the Elits are in trouble" dá-nos uma resposta muito clara.

A tradução é livre, mas podem encontrar o restante artigo original aqui.  
"Mesmo agora, três semanas passadas, as elites, e os seus porta-vozes na imprensa, continuam a interrogar-se acerca do que pretendem pessoas como Ketchup. Onde está a lista de reivindicações? Porque não nos apresentam objectivos específicos? 
O objectivo de pessoas como Ketchup é muito, muito claro. Pode resumir-se numa palavra - REBELIÃO. Estes protestantes não vieram para trabalhar dentro do sistema.  Eles não estão a guerrear com o Governo por uma reforma eleitoral.  Eles sabem que a política eleitoral é uma farsa e encontraram uma outra forma de se fazerem ouvir e de exercerem poder. Eles não têm fé, nem deveriam tê-la, no  sistem político ou nos dois maiores partidos políticos. Eles sabem que a imprensa não vai amplificar as suas vozes e por isso criaram uma imprensa deles mesmos. Eles sabem que a economia serve a oligarquia, por isso formaram o seu próprio sistema comunal."  

Actualização:
Michael Hudson: A public option in banking will be a structural answer to the power of finance


Porque nada existe que seja a preto e branco

11:51


Imagem: Sky Dancing


Ontem, ao mesmo tempo que se assistia, nas redes sociais e nos media mainstream em todo o mundo, a uma chuva de tributos a Steve Jobs, alguns internautas aproveitaram o momento para denunciar os atropelos aos direitos humanos perpetrados pela empresa que Steve Jobs liderava até há bem pouco tempo.
Há factos sobre a Apple que devem ser expostos e investigados a fundo, nomeadamente o uso de materiais nocivos e oriundos de regiões em conflito para o fabrico de aparelhos electrónicos, as condições dos trabalhadores em que os produtos da Apple são elaborados, a censura imposta a determinados conteúdos, questões de privacidade no uso de dados dos usuários, bem como outros factos denunciados pela jornalista Alicia Eler no artigo "The Other Steve Jobs: Censorship, Control and Labor Rights" no ReadWriteWeb. Estes factos, de resto, têm sido várias vezes denunciados por várias organizações de promoção e protecção dos Direitos Humanos em todo o mundo, como a Global Witness (http://www.globalwitness.org/library/dodd-frank-acts-section-1502-conflict-minerals, a Friends of Congo http://www.friendsofthecongo.org/resource-center/coltan.html) e a Business & Human Rights (http://www.business-humanrights.org/Categories/Individualcompanies/A/Apple), entre outras, e foram sendo refutados, também por várias vezes, por estudos de jornalistas mais ou menos independentes, como Jack Ewing, com os artigos "Blood on Your Phone? Unlikely It's 'Conflict Coltan'" e "Congo Fighting Revive Tainted Phone Fears".
Sem muito tempo para me dedicar a este assunto neste momento quero apenas hoje dizer que da mesma forma que não me choca que activistas em todo o mundo tenham aproveitado a data da morte de Steve Jobs para chamar a atenção para o lado negro da máquina comercial da Apple, também não me é indiferente que pessoas em todo o mundo tenham dispensado alguns minutos do seu tempo para prestar homenagem a uma personalidade fora do comum, que inspirou e continua a inspirar jovens em todo o mundo, pelo seu percurso de vida, pelos seus discursos e pela sua personalidade.
Nada existe que seja a preto e branco. Como dizem os anglosaxónicos: "Don't throw out the baby with the bathwater".
R. I. P. Steve Jobs.

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