Da ciência

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Há alguns meses estive numa conferência sobre "Ciência e Religião" e eu saí do lugar a entender melhor a discussão entre as chamadas "ciências" e as "humanidades". Lembrei-me do livro Imposturas Intelectuais logo após o discurso de um dos conferencistas. Nesse discurso, empolado, propositadamente ou não [devo confessar que fiquei na dúvida], punha-se em causa a utilidade das ciências. O conferencista acusava as ciências de criarem um mundo paralelo e de esquecerem as verdadeiras questões do ser humano, como a questão "difícil" da consciência. Acusou os cientistas de construírem uma nova realidade e de se entreterem com brinquedos criados por si próprios, ignorando as questões fundamentais da vida.
Havia um tom anedótico no discurso e a certa altura pareceu-me o conferencista mais um entertainer do que um conferencista e o seu discurso mais uma estratégia de diversão do que um texto sério e académico. O mais curioso da questão é que no final do seu discurso o senhor chamava a atenção do público para o carácter dúbio das suas palavras. Em resumo, ele pretendia criar a dúvida acerca da sua posição em relação ao discurso que acabava de proferir, reiterando, não obstante e curiosamente, que acreditava no que dissera. Infelizmente o único comentário que este discurso mereceu foi o de um outro conferencista, que por acaso era físico.
Fiquei seriamente desiludida no início, mas ao pensar na questão mais tarde em casa, reconheci que o tom irónico, abusado até, daquele discurso sobre as ciências levanta questões sérias.
A primeira questão é a da tentativa de criar uma discussão (no caso saiu frustrada; e teria sido interessante assitir ao debate). Ao levantar a dúvida sobre a autenticidade do seu discurso, ao criar para si o papel de parodiante, de entertainer, o conferencista levantava a questão sobre o que prevalece: os factos ou os argumentos? A ter surgido uma discussão no público, o conferencista podia optar pela posição que quisesse: afastar-se do seu discurso ou defendê-lo. Ir de encontro às ideias dos comentadores ou defendê-las. Criar disputa ou consenso. Quaisquer que fossem as posições do público, estava nas mãos do conferencista a direcção do discurso. Quaisquer que fossem os meus argumentos, ou os de qualquer espectador atento, estaria arrasada pelo carácter dúbio do discurso proferido. E nisso tenho de lhe tirar o chapéu.
A segunda questão, talvez mais interessante, prende-se com a crítica que foi feita às ciências. Talvez possamos pensar que descobrir a cura para o cancro ou criar formas de produção massiva de alimentos que acabem com a fome no mundo não sejam propriamente brinquedos com os quais possamos parodiar de ânimo leve. Não obstante, fica sempre a questão de entender se essas fabricações da ciência bastam ao ser humano.
Talvez as ciências se hasteiem de resultados, efectivamente visíveis, porque reais e muito práticos, mas, e no mais? Será que mais qualidade de vida, mais abundância, a nível global, bastariam? Criamos mais e mais e mais e mais… e quanto maior é o mais material, mais insatisfeitos.
Há sem dúvida uma falta de qualquer coisa. Há um vazio com o qual nos é difícil lidar, ateus niilistas do século XXI. Talvez estejamos todos à espera de alguma coisa em que acreditar; venham as respostas ou propostas de onde vierem. Talvez possamos prescindir, de boa vontade, de ter razão, talvez não queiramos, de facto, protagonismo, desde que nos seja revelada a Verdade.
Custa-nos abandonar a ideia de verdade absoluta: tínhamo-la num Deus, transferimo-la para a ciência e tecnologia e agora … ninguém sabe.

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