Benveniste e referência

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Ao definir a enunciação como acto individual de utilização da língua, Benveniste traz a debate a distinção de langue e parole inaugurada por Saussure. Mas o que interessa a Benveniste não é somente o texto do enunciado, mas “l’acte même, les situations où il se réalise, les instruments de l’accomplissement” (Benveniste, 1974: 81).

O enunciado existe na medida em que é proferido por um locutor e serve à construção de sentidos. Mas Benveniste vem defender que o acto enunciativo não pressupõe apenas um locutor, um eu, ele traz consigo também a noção de um alocutário, um tu, o que pressupõe uma visão dialógica da língua: “dès qu’il se déclare locuteur et assume la langue, il implante l’autre en face de lui” (Benveniste: 1974: 82) . É esta visão dialógica que está presente quando Benveniste vem afirmar que o que caracteriza a enunciação, em geral, é “l’accentuation de la relation discursive au partenaire”.

Não deixamos de pressentir aqui uma contradição: por um lado a enunciação é definida como um acto individual de utilização da língua, por outro lado, ela implica uma “relation discursive au partenaire”. Na verdade, devemos entender as duas definições como sobrepostas. A enunciação é um acto individual enquanto processo de apropriação e enquanto conversão individual da língua em discurso, mas transforma-se numa relação dialogal no exacto momento em que o locutor se assume como tal, assumindo também, neste momento, o outro, o alocutário.

Nesta relação dialógica surgem os indícios (de pessoa, de temporalidade, de ostension), que não devem confundir-se com a sua categoria gramatical do léxico de uma língua. Estes indícios são-no enquanto tal apenas na enunciação.

A este propósito, Benveniste, no capítulo XV do mesmo livro, faz uma distinção entre semiótica e semântica na tentativa de definir forma e sentido em linguagem e que é bem esclarecedora da distinção entre aquilo que o linguista denomina, logo no início do presente capítulo, “emprego das formas” e “emprego da língua”:

“ A noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e acção; vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas […], organizando toda a vida dos homens. […] Somente o funcionamento semântico da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao mundo, e por consequência a normalização do pensamento e o desenvolvimento da consciência” (Benveniste, 1989: 229).

A ideia de que “o funcionamento semântico da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao mundo” traz consigo um outro conceito fundamental para a teoria da enunciação de Benveniste: a noção de referência, defendida como parte integrante da enunciação (Benveniste, 1972: 82). A esta noção de referência junta-se uma outra: a noção de “centre de référence interne”, cuja função é “mettre le locuteur en relation constante et nécessaire avec son énounciation” (Benveniste, 1974: 82). É este centro de referência interno que permite a emergência dos índices de pessoa, os índices de temporalidade e aquilo que Benveniste designa de índices de ostension. Uma atenção especial é dada à temporalidade. Ao contrário de considerá-la um quadro inato do pensamento, Benveniste concebe-a apenas no acto da enunciação. E é a partir deste presente da enunciação que se constrói o passado e o futuro e, inclusivamente, o presente formal, exterior ao acto de enunciação.

Podemos concluir afirmando que a teoria de enunciação apresentada por Benveniste vai além do estreito conceito estruturalista de língua como um código estável e predefinido, imanente, para passar a ver a língua também como uma entidade inferencial, dialógica. A enunciação coloca o homem no mundo, no centro do acto enunciativo. E é a partir do acto da enunciação que se constroem sentidos.*

* Texto elaborado para a cadeira de Análise do Discurso do Mestrado em Ciências da Linguagem, 2006/2007, Universidade do Minho (cadeira leccionada pela Professora Doutora Maria Aldina Marques).
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Referências bibliográficas :

Émile BENVENISTE (1974). "L'appareil formel de l'énonciation", Problèmes de Linguistique Générale. Tome II. Paris: Gallimard

Émile BENVENISTE (1989). “Cap. 15 - A forma e o sentido da linguagem”, Problemas de Lingüística Geral. Vol. II. Campinas: Pontes Editores

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