Da revolta

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Pintura: "Prometeu levando fogo à humanidade" de Heinrich Füger, 1817 em Wikipedia


"Compreende-se, então, que a revolta não possa prescindir de um estranho amor. Os que não encontram descanso nem em Deus nem na história, condenam-se a viver para quem, como eles, não pode viver: para os humilhados. O movimento mais puro da revolta coroa-se então com o grito dilacerante de Karamazov: se eles não são todos salvos, para que serve a salvação de um só? Assim nas prisões de Espanha, condenados católicos recusam hoje a comunhão porque os padres do regime a tornaram obrigatória em certas cadeias. Também esses, únicas testemunhas da inocência crucificada, recusam a salvação se esta tiver de ser obtida a troco da injustiça e da opressão. Esta loucura generosa é a da revolta, que oferece imediatamente a sua força de amor e com a mesma brevidade recusa a injustiça. A sua honra consiste em nada calcular e em tudo distribuir à vida presente e aos seus irmãos vivos. É assim que ela se vai prodigalizando em relação aos homens futuros. A verdadeira generosidade em relação ao futuro é dar tudo ao presente.
Assim prova a revolta ser o próprio movimento da vida e afirma que não pode ser negada sem que se renuncie a viver. Cada vez que ela solta no ar a pureza do seu grito, provoca uma atitude corajosa em mais um ser. Ela é portanto amor e fecundidade, ou então nada é. A revolução sem honra, a revolução do cálculo que, preferindo um homem abstracto ao homem de carne, nega o ser tantas vezes quantas considerar necessário, coloca precisamente o ressentimento em lugar do amor. Assim que a revolta, esquecida das suas generosas origens, se deixa contaminar pelo ressentimento, nega a vida; corre para a destruição e faz erguer-se a corte desprezível desses rebeldezinhos, semente de escravos, que actualmente acabam por se oferecer, em todos os mercados da Europa, a qualquer servidão. Já não se trata nem de revolta nem de revolução, mas de rancor e tirania. Nessa altura, quando a revolução se converte, em nome do poderio da história, nessa mecânica assassina e desmesurada, uma nova revolta se torna sagrada, em nome do equilíbrio e da vida. [...] Para além do niilismo, todos nós, no meio das ruínas, preparamos um renascimento. Mas poucos sabem disso. [...]
No meio-dia do pensamento, o revoltado recusa assim a divindade, a fim de poder partilhar as suas lutas e o destino comuns. Escolheremos Ítaca, a terra fiel, o pensamento audacioso e frugal, a acção lúcida, a generosidade do homem advertido. No seio da luz, o mundo continua a ser o nosso primeiro e último amor. Os nossos irmãos respiram debaixo do mesmo céu que nós; a justiça encontra-se viva. Nasce então a alegria singular que ajuda a viver e a morrer e a qual, doravante, nos recusamos a remeter para mais tarde. [...] Todos podem, com efeito, reviver junto dos sacrificados de 1905, mas com a condição de compreenderem que se corrigem uns aos outros e que um limite, à luz do Sol, os obriga a parar. Cada um diz ao outro que não é um deus; assim se acaba com o romantismo. [...]
[...] na hora em que finalmente nasce um homem, há que deixar a época e as suas fúrias adolescentes. "


Albert CAMUS (2003). O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, pp. 362-364. (sublinhado meu)

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