Branca de Neve

10:12

Branca chegara a moça com uma história de vida sem ignomínia. Nunca se engalfinhara em nenhuma briga de rua. Nunca furtara maçã alguma de um alheio pomar, nunca fizera troça de nenhum amiguinho menos dotado de compreensão. Nunca levara reguadas na escola. Nunca se queixara da fome, da sede, se estava frio ou calor. De resto, preferia sentir-se-lhe secar a boca a furtar um gole de água numa fonte encostada a um campo aberto, mas com dono.

Nas festas e romarias ficava quieta a um canto. Se acontecia convidarem-na para se juntar às danças, negava-se sempre. Ruborizavam-lhe as faces ao mais pequeno diálogo, fosse com estranhos ou gente conhecida.

Não era alegre nem triste. Vivia os dias como quem acorda para uma rotina preestabelecida desde há muitos séculos. Nunca se lhe vira a cara de espanto, própria das crianças. Não se comovia com nada, nunca se revoltara com nada e ninguém nunca lhe vira nos olhos cheios a mais pequena lágrima.

Ninguém saberia dizer se Branca era bonita ou feia. Tinha uma cara redonda sardenta, uns grandes e profundos olhos negros onde cabia o mundo. Os cabelos escorridos eram finos, de um caramelo ténue que doirava ao sol. O seu corpo apeteceria, se não estivesse encoberto nas mais pardacentas vestimentas. Os seus seios opulentos andavam sempre escondidos, como que uma mácula, no amontoado de panos que lhe cobria o tronco, dando-lhe a impressão de uma figura demasiado empolada. A sua pele era branca, talvez demasiado branca para uma menina saudável, como era. Sim, adoecera, quando os seus irmãos adoeceram também, das doenças normais das crianças, que não deixam marcas. Nem o sol, que lhe abrasava a pele quando trabalhava no campo a ajudar a mãe a semear batatas ou a regar os feijões de balde à cabeça, lhe atrigueirava a pele, apenas lhe acobreava as sardas intermináveis da face.

Branca vivia, desde que nascera, no anonimato. Quando tinha quatro anos a mãe esquecera-se dela um dia, na feira da vila; viera-lha trazer o vizinho no carro de bois junto com o feno para o gado depois de a reconhecer no meio dos bois para venda, mais impregnada de cheiro de estrume que corte de porcinos.

Esqueciam-se de a convidar para as festas da paróquia, não por caçoada ou improbidade, mas simplesmente porque Branca existindo, desmaterializava-se, era sombra de tudo e de todos: da irmã alegre, altiva e pomposa, do irmão esperto, atinado e brioso, da própria mãe, prestativa e bondosa e até dos próprios animais da quinta, profícuos e amplos.

Na verdade, ninguém saberia dizer qual o adjectivo que poderia caracterizar Branca. Ninguém a conhecia e emitir um juízo sobre ela era botar ao acaso. Não era misteriosa, não era isso - ignorava o que eram jogos de galanteio ou sedução, embora tivesse dentro da sua casa uma mestra – Branca simplesmente passava como brisa fresca que se sente mas não se vê.

Com isto, Branca aprendera a estar e a viver só consigo. Os convites, quando se vinham desculpar do esquecimento e convidá-la pessoalmente para as festas, declinava-os.

Até que um dia deixaram de a convidar.

A irmã não se importava, Branca era um enfado em festas: era uma criança, não sabia conversar, não sabia dançar e o seu jeito de bicho-do-mato repelia os rapazes. O irmão insistia sempre, obrigava-a a arranjar o cabelo, a pôr bâton na boca pequenina e guardava as ofertas dos padrinhos ricos no dia do seu aniversário ou festa grande para lhe comprar os mais bonitos vestidos. Mas, se nos primeiros tempos conseguia convencê-la a acompanhá-lo, deixou de o conseguir e, não que desistisse, acabou por convencer-se de que o tempo iria fazê-la sair da casca.

Não fez, ou se fez, foi pela estrada travessa.

O verdadeiro prazer de Branca era estar com os animais: ordenhar as vacas, ver nascer os patos, ver mamar os vitelos. Com eles conversava sobre todas as coisas da vida, desde a origem do mundo ao melhor modo de ajeitar a palha para se deitarem.

Estudada de fora, Branca era uma menina comum a todas as outras: tímida, circunspecta, com uma veia para freira, esposa de Cristo. Mas ninguém suspeitava que, durante o tempo que assistia à missa, acompanhada da mãe, Branca pensava apenas na sua lavoura, no seu campo de ervas, no momento de se estender ao sol, de se refrescar na água do tanque fresco, de dormir a sesta debaixo das videiras.

Quando lhe começavam a brotar do peito os nódulos primaveris, a rapariga tratou de os esconder, das suas regras ninguém dava conta, nem a irmã, com quem dormia no mesmo quarto.

Na altura em que se amontoaram na cabeça de Branca tantas perguntas que já não conseguia mais pensar, viu-se só com a mãe. A irmã casara e fora viver para a terra do marido. O irmão estudava na universidade, a mais de 400 km. Desde que o pai morrera, viviam à míngua. Inácio não se podia dar ao luxo de pagar o bilhete do comboio só para ver a irmã um dia e voltar no dia seguinte.

A mãe, quando se viu sozinha em casa com a filha mais nova, apercebeu-se de tudo isto, mas não se deu ao trabalho de desfazer as dúvidas da filha sobre as questões existenciais de qualquer comum adolescente, acreditava que a natureza trata de tudo sozinha.

E num dia qualquer, como qualquer outro…

- Branca, minha filha, que fizeram contigo?

Branca não compreendeu o espanto ou desespero da mãe. Não estava triste. Nem alegre nem triste. Sim, passavam por ela homens de toda a espécie, idades, mas isso era mau? A Elisa sempre dizia que ter muitos namorados era sinal que se era bonita. Afinal, nunca ninguém antes lhe tinha dito isso, que era bonita. E tinham-se também esquecido de lhe dizer que gostavam dela.

Patrícia C. França (2002)


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