Da universalidade

18:29

Há um assunto com que me deparo recorrentemente, que abarca uma série de áreas às quais estou ligada, ou profissionalmente ou por contingências da minha formação académica. Estou a falar da universalidade, que se liga a áreas tão diversas como a Filosofia, a Educação, a Psicologia, a Linguística, o Direito, a Sociologia, a Política, etc. Muitas mais áreas caberiam aqui, mas estas são exemplificativas da diversidade que o tema  gera. 
Para quem, como eu, trabalha na área da Linguística, muito particularmente na área da Linguística Aplicada: Lexicografia, Tradução e Ensino de línguas, o tema surge não raras vezes, e aparece com dois pólos opostos. Por um lado temos os universais linguísticos, que são conceitos comuns a a várias línguas e facilmente entendidos por falantes de línguas e culturas diferentes, por outro lado temos os tipos, que podemos considerar conceitos específicos de determinada língua e cultura, incapazes de ser transferidos para outras línguas e culturas e, por isso, impossíveis de traduzir (vd. B. Comrie, Language universals and linguistic typology). Há teorias linguísticas que defendem ambos os pólos, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista prático. Se por um lado os universais são mais facilmente aceites em sub-áreas da Linguística como a Sintaxe e a Fonologia (temos como exemplo o Alfabeto Fonético Internacional), na Semântica, por outro lado, a discussão alarga-se. Deixem dar-me um exemplo muito usado: há teóricos que consideram que a palavra "saudade" em português não tem tradução para outra língua, enquanto que outros teóricos dirão que, embora a palavra não possa ser traduzida por uma outra palavra numa outra língua, pode, no entanto, ser traduzida através de uma expressão ou definição. A discussão na área é visceral. Na minha opinião, muitas destas discussões caem no erro básico de confundir a unidade lexical (a palavra em si, o significante) e o referente ou conceito (aquilo que a palavra designa, ou o significado). Mas ainda que possamos distinguir os dois conceitos à partida, a discussão entra por caminhos mais complexos e acaba com cada linguista a definir para si mesmo o que entende por unidade lexical e referente/conceito, sem que haja um consenso generalizado. Assim se faz ciência na área da linguagem: discutindo conceitos. Na minha muito humilde opinião, acredito que tudo se traduz e pode ser comunicado. Acredito que não há palavra, pensamento, texto que não possa ser decifrado, traduzido e partilhado. Do ponto de vista semântico, podemos acreditar que o léxico mude de língua para língua, mas, em última análise, o referente, aquilo a que o significado se refere, tem necessariamente de ter uma base comum, ou não fossemos nós todos humanos.
Ora a universalidade também é tema recorrente em áreas como a Psicologia, a Sociologia, o Direito e a Filosofia. Nestas áreas, tal como na Linguística, também se discute a universalidade dos conceitos. O que me interessa para este post hoje é a universalidade dos direitos. Num post já bastante antigo, com o título "Dos direitos humanos" aqui neste blog, me debruçava sobre o tema. Na altura ele vinha a propósito das declarações de Danielle Bleitrach sobre a questão do Tibete. Hoje o tema vem a propósito dos movimentos sociais recentes. Se a discussão na área da Linguística a universalidade não tem consequências muito visíveis do ponto de vista social e político - a não ser na questão do Multilinguismo e na defesa de políticas de língua, que determinam a autonomia identitária de determinadas populações (veja-se, a título de exemplo, as línguas das comunidades autónomas na Espanha) -  na área do Direito ela tem repercussões práticas muito visíveis. As leis são elaboradas a partir de ideologias políticas. Tenho a certeza que devem ter sido escritos tratados sobre o conceito de "bem comum" e tenho a certeza de que a universalidade dos direitos é assunto recorrente nos cursos das faculdades de Direito, mas ela deverá ser o fundamento das discussões políticas actuais. Existirão denominadores comuns para os direitos humanos? Existem imperativos categóricos que devem servir de base à legislação sobre direitos humanos? Em que princípios se baseiam as leis? Estas são questões importantes que fazem sentido serem discutidas num mundo cada vez mais global. 
Há tempos, enquanto me debruçava sobre o tema deste post, fui descobrir, nas estantes de casa dos meus pais, um livro que fazia parte da bibliografia da cadeira de Psicologia quando andava no quarto ano da minha licenciatura em Ensino de Línguas e Literaturas Modernas. Já lá vão mais de 12 anos, e a data da primeira edição do livro data do final dos anos 70 - e é necessário contextualizar o livro historicamente -, mas eu considero que o livro apresenta alguns conceitos importantes, na falta de referência mais actual. O livro intitula-se Psicologia do Adolescente, tem como autores N. A. Sprinthall e W. A. Collins, e conta com edição portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian (edição de 1994). O livro é um manual para professores sobre os processos  de  desenvolvimento que ocorrem durante o período da adolescência. O capítulo que me interessa para o tema dos universais é o capítulo 6, sobre o juízo moral, que eu chamaria hoje ética, e o desenvolvimento dos valores. O capítulo dedicado a este tema não é um manual de boas maneiras para adolescentes, se assim fosse não o teria trazido para aqui, é antes um quadro de referência que explica a forma como se desenvolve a nossa consciência moral e os estádios pelos quais ela passa. Os autores fazem especial referência aos estádios de desenvolvimento moral de L. Kohklberg que, como referem os autores, "são sistemas de pensamento, isto é, sistemas que descrevem como os indivíduos processam e raciocinam sobre questões relativas ao domínio moral e aos valores" (p. 248-249).


Imagem:  N. A. Sprinthall e W. A. Collins, Psicologia do Adolescente, FCG: 1994, p. 247

Os estádios pré-convencionais (1 e 2) desenvolvem-se  por volta dos 10 anos, independentemente do meio do qual provém a criança; os estádios convencionais (3 e 4) predominam aos 16 anos. Por volta dos 20 e os 22 anos, surgem evidências do estádio 4. Os estádios 5 e 6 seriam estádios reservados à idade adulta, embora nem todos os indivíduos os desenvolvam. Importa referir que, como defendem os autores, estes estádios não são lineares, apresentam progressos e recuos e podem até manifestar-se num indivíduo em diferentes áreas da sua vida e para diferentes problemas com que se depara na sua vida quotidiana. Embora os autores não o afirmem, arrisco dizer que muitos adultos não chegam a evoluir para o nível superior ao 2 e muitas crianças de 10 anos conseguem raciocinar moralmente ao nível 5 ou 6. Mas mais do que relatar os diferentes estádios de Kohklberg, é importante referir um ponto curioso: é que o estádio de desenvolvimento moral está de certa forma relacionado com o comportamento real em situações concretas do dia-a-dia. Isto significa que os indivíduos tendem a agir de acordo com os seus valores, em contextos específicos da sua vida. É também importante deixar aqui, para o tema deste post, um estudo levado a cabo por Alberta Nassi sobre os estádios de Kohklberg. Nassi analisou um grupo de estudantes  da Universidade da Califórnia em Berkeley durante quinze anos e as conclusões foram surpreendentes: 
"Entre 1964 e 1965, esta instituição (e outras) encontravam-se numa fase de agitação devido ao uso da desobediência civil como forma de pôr em causa a autoridade governamental e devido ao envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietname. Muitos estudantes que pertenciam a uma organização intitulada Free Speech Movement (FMS) entraram, activamente, em  confronto com as dimensões éticas e morais da política  nacional americana [...] formando marchas de protesto e praticando outros actos de desobediência civil devido aos quais alguns dos manifestantes foram presos. Os dados da investigação realizada nessa altura indicaram que muitos desses estudantes  apresentavam um raciocínio baseado em princípios morais (estádios 5 e 6), na classificação de Kohlberg" (N. A. Sprinthall e W. A. Collins, Psicologia do Adolescente, FCG: 1994, p. 287-288).
O que aconteceu passados 15 anos surpreendeu Nassi e alguns observadores da altura que comentavam que aqueles estudantes iriam desistir do seu idealismo, mais cedo ou mais tarde:
"para além de continuarem idealistas e de se dedicarem a questões de justiça social, cerca de 70% dos líderes estudantis do FMS foram classificados no nível dos princípios na escala de juízo moral de Kohlberg. [...] Para além disso, os líderes do FMS mostraram uma maior tendência para escolherem profissões de carácter humanitário, em oposição à iniciativa privada. [...]." (Op. cit, p. 288-289).
Os autores são contundentes a afirmar que os "indivíduos [...] que apresentam um juízo moral ao nível dos princípios [estádio 5  e 6], habitualmente, não retrocedem e não desistem do seu idealismo. Mantém-se, assim, a relação entre este nível de raciocínio e o comportamento real". (Op. Cit., p. 289) De referir que os estádios 5 e 6 são os estádios mais elevados de raciocínio moral.
A analogia que quero fazer entre o estudo de Nassi e os movimentos sociais recentes é evidente. É importante também sublinhar a caracterização que Kohklberg faz do estádio 6, o estádio mais elevado do juízo moral:
"Estádio 6: Orientação para uma tomada de consciência ou para princípios, não apenas para as regras sociais impostas, mas para princípios ligados às escolhas que apelam para uma universalidade e consciência lógicas; a consciência é um agente director, juntamente com o respeito e a confiança mútuos." (Op. Cit., p. 247, sublinhado meu)
Quem leu o meu post de ontem sabe que este post de hoje é mais uma resposta ao artigo de Zygmunt Bauman no El País. Os jovens destes movimentos sociais recentes (desde os 15M, aos Occupy Wallstreet aos Indignados), não só sabem do que falam como sabem exactamente o que querem. Rui Tavares, eurodeputado português pelo Bloco de Esquerda, resumia em três pontos as suas aspirações: 
"1. é possível, e absolutamente vital, inverter a relação de poder entre os estados e a finança capitalista. 2. o sistema político-partidário falhou nessa missão - mesmo os partidos de oposição, que podem ter razão no conteúdo, mas que insistem na forma e na maneira autoritária e hierárquica de fazer política. 3. se o sistema financeiro sequestrou os nossos governos, os povos do mundo terão de contar uns com os outros - e hoje estão mais informados e interligados que nunca." (Rui Tavares, A Demoglobalização).
Para tratar destes jovens de hoje a sociedade tem duas opções: ou se eleva ao nível dos seus princípios e os trata horizontalmente, ou retrocede em valores e ignora estes jovens pelo uso da força. Parafraseando Raimon, ells no són d'aquest món.

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