Universidades, financiamento público e interesse público (Parte 1)
"No Brasil, a maior parte das pesquisas acadêmicas é financiada com recursos públicos. Em algumas áreas, como as ciências humanas e sociais, o financiamento público chega a quase 100%. De uma pesquisa assim custeada, espera-se que contribua para o entendimento e/ou solução dos grandes dilemas vividos pela população que a financia. Disse dilemas e não problemas, justamente para fugir da idéia de que o financiamento público só é legítimo para aquelas pesquisas que tragam soluções para os problemas do cotidiano da população. Afinal, como já dizia o poeta,"a gente não quer só comida..." e um sonho pode, tanto quanto a falta de comida, trazer à baila os grandes dilemas do humano." Luciano Mendes de Faria Filho,"A pesquisa acadêmica e as políticas públicas no Brasil". In Jornal da Ciência, 23 de Novembro de 2011. URL: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=80217
Ontem foi o segundo e último dia das I Jornadas Internacionais: corpora e tradução, um encontro académico sobre corpora e tradução, realizado no âmbito do Projecto Per-Fide, na Universidade do Minho. Este post não vem a respeito dos assuntos académicos abordados no encontro, mas de um comentário que ouvi, a alguns dos palestrantes, no intervalo das comunicações. O comentário dizia respeito à pressão, cada vez mais forte, que as universidades públicas sofrem no sentido de estabelecer ligações estreitas com empresas privadas e o problema que isso representa para áreas académicas menos 'comercializáveis'. O tema parece, de facto, estar na ordem do dia, com a cada vez maior limitação de verbas, por parte do Estado, às universidades públicas. A FCT, só para dar um exemplo, incentiva a candidatura a bolsas de doutoramento em empresas e vemos, cada vez mais, as universidades a promover encontros entre empresas e estudantes, dentro do espaço da universidade.
Já durante a minha licenciatura, em finais dos anos 90, numa cadeira intitulada Administração Escolar, se apresentava o paradigma da universidade-empresa sem grandes questionamentos. Confesso que a primeira vez que me deparei na prática com esta ligação foi num congresso internacional. O que me inquietou no programa do congresso foi o facto de membros de empresas de software privado e de editoras privadas serem apresentados num congresso científico com o mesmo espaço que os restantes congressistas, fossem eles professores, mestrandos ou doutorandos. Misturar academia com empresas privadas parece-me, hoje, o mesmo que misturar ciência com interesses corporativos e financeiros. A ligação, amplamente aceite e inquestionável, parece-me, no mínimo, perigosa. No caso da Linguística Aplicada, como áreas como a Tradução, a Lexicografia e a criação de corpora, a ligação entre academia e interesses económicos não me parece verdadeiramente ameaçadora para o interesse da sociedade geral, mas se pensarmos na área da Medicina, da Sociologia ou do Direito a questão torna-se prioritária.
Todos sabemos o que é que acontece quando deixamos que as empresas invadam o espaço universitário e quando o próprio Estado se demite do seu papel de promotor de um direito universal e deixa esse papel à sociedade e empresas privadas. Acontece que áreas académicas não rentáveis são relegadas para segundo plano. A verdade é que não é só um problema de divisão disciplinar. O problema acontece mesmo no seio de uma mesma disciplina: as sub-áreas mais teóricas, com uma componente mais conceptual, são suplantadas pelas sub-áreas mais práticas e que produzem resultados tangíveis com um produto final, vendável. Hoje as ciências puras sofrem o mesmo preconceito que há pelo menos dez anos atrás se impunha às componentes práticas dessas ciências. Lembro-me perfeitamente de ler artigos académicos a questionar a inclusão da Lexicografia na área da Linguística; a Lexicografia não era suficientemente científica, diziam. Hoje acontece o contrário: são as áreas mais práticas que dispensam as áreas mais teóricas e parece até heresia fazer investigação hoje exclusivamente na componente teórica. É curioso que, por exemplo, vejamos linguistas interessados em construir glossários, dicionários terminológicos, ontologias, etc, em áreas como a Biomedicina, Direito, Economia, etc, e ainda não conseguimos construir um simples dicionário terminológico actualizado da nossa área. O único dicionário terminológico de Linguística existente em português para consulta na Internet é o Dicionário de Termos Linguísticos, da Associação de Informação Terminológica, que se apresenta num simples documento PDF. Seremos tão pouco significantes para nós mesmos?
Não estou a defender a protecção de um ponto de vista em detrimento de outro, acho apenas que a balança não está equilibrada. E, na verdade, da maneira como as directivas governamentais estão a ser redigidas, receio bem que haja disciplinas que deixem até de fazer parte dos pratos da balança.
Nesta lógica, só as áreas que visivelmente geram lucro serão cobiça das empresas e objecto do seu financiamento. E acabaremos no que já se tem começado a assistir: o desinvestimento nas áreas como as Humanidades ou as Ciências Sociais e nas componentes teóricas tout cour. Muitos perguntarão: e daí? É preciso adaptação. Daí que estaremos a desenhar universidades que se afastam cada vez mais dos desígnios para que foram criadas: permitir o desenvolvimento da ciência em todas as suas áreas, harmoniosamente.
Ontem, no mesmo congresso, tive a oportunidade de ouvir, mais uma vez, o lamento de um estudante de Linguística de que não há empregos na área e que é preciso apostar em áreas que dão emprego. E pus-me a pensar acerca das áreas que geram emprego e, obviamente, só podia chegar à mesma conclusão de sempre: se temos as empresas dentro da universidade, o que podemos esperar do mercado de trabalho? Se apenas há investimento financeiro em determinadas áreas, não podemos esperar que fora da universidade o capital seja mais benevolente. As conclusões são fáceis de tirar: quanto maior o investimento, maior a oferta de trabalho. É um círculo vicioso. Não é que as áreas das Humanidades tenham uma maior taxa de desempregados por si mesmas, é que houve um total desinvestimento nessa área, ao ponto de reduzirem os empregos que essas mesmas áreas poderiam gerar. Não há apoio à publicação, não há apoio à cultura, não há investimento em espaços de debate, apoio a congressos e eventos nas áreas das Humanidades, etc. Se não há esse investimento, deixa de haver 'público'.
Hoje, nem de propósito, deparo-me com o artigo do Rui Tavares sobre um artigo de Paul Mason que fala sobre os motivos para a crise económica ter estalado em todo o mundo. Mason aponta como causa primeira o licenciado desempregado. A resposta do Rui parece-me clara e encaixa bem no tema deste post. O Rui realça que esse licenciado desempregado ou precário de hoje não está sozinho. Há um facto fundamental que une todas as camadas da população: a certeza de que a promiscuidade entre o mercado e a política "fez de todos eles (de todos nós) descartáveis"."Considerem os seguintes sintomas dessa realidade. A CNN vai despedir 50 jornalistas*, principalmente de imagem, para usar material recolhido pelos amadores. Pela primeira vez, a automação começa a substituir trabalho qualificado e não só braçal. Uma subida nas taxas de juro faz substituir políticos eleitos por tecnocratas" (Rui Tavares, "A verdadeira crise")Desengane-se quem acha que nunca vai chegar a sua vez. As desculpas são enormes: a idade, o género, a educação, a falta dela, a qualificação, a falta dela, a família, a falta dela, a modernização, a rentabilização de custos, a quebra de lucros, a dívida, etc, etc, etc.
"Isto acontece quando poderíamos estar tão perto de conquistar velhos sonhos da humanidade: usar a educação contra a ignorância, o acesso à informação para o exercício da democracia, a automação contra o trabalho embrutecedor. Mas as conquistas não caem do céu." (Rui Tavares, "A verdadeira crise")
* Brent Lang at TheWrap, "CNN Lays Off 50 Staffers After Employee Appreciation Week", 11 Nov. 2011
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