Da culpa

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"Compreendi, então, sem revolta, como nos resignamos a uma ideia cuja verdade se conhece há muito tempo, que aquele grito que, anos antes, havia retinido sobre o Sena, atrás de mim, não tinha cessado, levado pelo rio para as águas da Mancha, de caminhar pelo mundo, através da extensão ilimitada do oceano, e que aí me esperava até àquele dia em que o encontrara. Compreendi, também, que ele continuaria a esperar-me sobre os mares e os rios, por toda a parte enfim onde se encontrasse a água amarga do meu baptismo. Mesmo aqui [...] não estamos nós sobre a água? [...] Nunca mais sairemos desta pia de água benta. [...]
Acabara-se a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-me e reconhecer a minha culpabilidade. Era preciso viver no «desconforto». É verdade, o senhor conhece aquela cela de masmorra a que na Idade Média chamavam o «desconforto»? Em geral, esqueciam-nos aí para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficientemente larga para se poder estar de pé nem suficientemente alta para se poder estar deitado. Tinha de se adoptar o género tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda, a vigília um acocoramento. Meu caro, havia génio, e eu peso as minhas palavras, nesta descoberta tão simples. Todos os dias, pelo imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado sabia que estava culpado e que a inocência consiste em nos espreguiçarmos gostosamente. [...] Podia viver-se nesta cela e ser-se inocente? Improvável [...]. Que a inocência seja forçada a viver corcunda, recuso-me a considerar por um segundo esta hipótese. De resto, nós não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem atesta o crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança. [...]
Conte-me então [...] o que lhe aconteceu uma noite nos cais do Sena e como conseguiu nunca mais arriscar a vida. Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não cessam de retinir nas minhas noites e que eu direi enfim pela sua boca: «Ó pequena, deita-te de novo à água para que eu tenha pela segunda vez a sorte de nos salvar a ambos! Pela segunda vez, hein?, que imprudência! Suponha, caro colega, que nos tomam à letra. Teríamos de cumprir. Brr...! A água está tão fria! Mas tranquilizemo- nos! É tarde de mais, agora, será sempre tarde de mais. Felizmente!"

Albert CAMUS (2008). A Queda. Lisboa: Editora Livros do Brasil, pp. 85, 86, 113. (sublinhado meu)

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