"Como pode o amor ser contingente?"

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Sartre e Beauvoir. A história de uma vida em comum, de Hazel Rowley, é um retrato cru da história do relacionamento de duas das figuras europeias mais controversas do século XX. O livro lê-se não como uma biografia, mas como um romance. Admiradora confessa de Beauvoir como activista feminista, devo dizer que há partes e detalhes no livro que me incomodam. Mas esse não é o ingrediente-chave para um grande livro? Os livros, os grandes livros, devem incomodar-nos. Sim. Mas esse incómodo torna-se bizarro quando a história contada é uma biografia de um homem ou de uma mulher que admiramos, quando o livro não é uma obra ficcional. Aceitamos o incómodo num grande livro de ficção, mas dificilmente na vida de uma figura que admiramos.
Há relatos da vida privada de Beauvoir e Sartre que deveriam ter permanecidos privados. Deveria dizer alguma coisa o facto de, em todo o livro, eu me ter fixado num excerto de um texto de Nelson Algren - precisamente Algren - e não num qualquer texto de um dos dois protagonistas. Quem me conhece sabe que não é a imoralidade que me incomoda ali. Não é sequer a amoralidade. É outra coisa. É aquela profunda convicção que determinados seres têm de vislumbrarem em si mesmos a genialidade, quais semi-deuses, obrigam-se a olhar os outros como seres inferiores, despojados de livre-arbítrio, "as pessoas a quem simplesmente tinha de se mentir" (2007:105). E eu, que tenho alergia tanto a 'ismos' como a séquitos, fiquei também tremendamente decepcionada com as noções de "lealdade à família", sartrianismo ou sartrianos que existia à volta de Sartre. Para amantes da liberdade, não é isto paradoxal? 
"Madame de Beauvoir, nada disposta a arriscar a sua própria liberdade, sentiu que podia contar com Jean-Paul Sartre para lhe ser infiel. Foi uma jogada astuta... «Sartre e eu fomos mais ambiciosos; o nosso desejo foi viver 'amores contingentes'.»... [...]
Qualquer pessoa que seja capaz de viver o amor de forma contingente passou-se da cabeça recentemente. Como pode o amor ser contingente? Contingente de quê? [...] 
A anterior determinação de Madame de Beauvoir em «escrever ensaios sacrificiais, nos quais o autor se despe completamente, sem desculpas», tem sido empregue desde então com tal fervor e perícia que praticamente toda a gente foi sacrificada, excepto ela própria..."
Nelson Algren, citado por Hazel Rowley (2007: 339)
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Hazel Rowley (2007). Sartre e Beauvoir. A história de uma vida em comum. Lisboa: Caderno. Trad.  Elsa T. S. Vieira.

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