Letargo

17:26

Hoje quero fechar os jornais, desligar a televisão, o computador que me dá acesso à internet, o meu aparelho de som, todas as rádios.
Quero fechar no escritório todos os livros científicos, literários, infantis; tirar da minha beira todos os filmes antigos, modernos, bons ou maus e retirar das paredes os quadros desenhados ou pintados.
Quero ficar inerte, alheia, até de mim.
Quero retirar da minha presença toda a ideologia. Toda a ideologia. Até de mim.
Ficar quieta, de olhos fechados, sem pensar, sem sentir nada.
Hoje compreendo apenas os suicidas (e Camus não é para aqui chamado).

Bom... posso tolerar a poesia... mas sem ideologia...

LETARGO

estou sentado na vida
a aguardar o regresso da poesia

caíram-me dos bolsos centenas de palavras
e devem andar por aí a pedir à vassoura do vento
que volte a reuni-las

vejo crescer as árvores
acenarem entre si
sem nada quererem saber da minha inércia vegetal
entrecruzam-se as aves transitórias
esquecidas de tudo o que sonhei
cavalgam-se mutuamente as nuvens
ignorantes da nuvem plúmbea que me atravessa

e tudo passa indiferente
arrastando o peso do universo
e a lenta celeridade do tempo
que só tem por emprego esquiar brandamente
para um precipício inexorável
no fundo da planura

também eu devo ter um emprego qualquer
mas sinto-me sem préstimo
ninguém me explicou tarefa nenhuma
nem eu já sei como ser útil
a não ser para construir
a quotidiana futilidade

[...]

Anthero MONTEIRO (2003) Desesperância. Gaia: Corpos Editora, p. 45

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