Freud interpretando entrevista a um jihadista

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Como Freud interpretaria uma entrevista com um jihadista *:
http://ajm.ch/wordpress/?p=374
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Parti para a interpretação do texto recorrendo aos seguintes postulados freudianos:

- a religião é uma neurose humana;
- deus = figura paterna (pai da pré-história= pai pré-edipiano) ;
- o mito do parricídio primordial acompanha o ser-humano;

- o ser-humano rege-se pelo dualismo pulsão de vida vs pulsão de morte;
- a repetição do trauma está na origem do postulado da pulsão de morte;


Interessante sublinhar que o entrevistador é judeu, o que confere à entrevista um carácter muito particular: não há uma posição neutra, mas dois representantes dos dois lados de um conflito. Uma análise sob uma perspectiva freudiana do conflito israelo-palestiniano dava só por si uma tese, se é que este assunto, possa ou deva continuar a ser discutido.
Há tempos achei interessante a visão que um amigo de formação freudiana deu sobre este conflito e pareceu-me que ela encaixava aqui: dizia ele que Freud fez recuar aos tempos bíblicos o conflito entre judeus e muçulmanos. Esta visão encontra-se no livro Moisés e o Monoteísmo e achei interessante explora-la.

Abraão, na impossibilidade de gerar um filho através de Sara, coabita, com consentimentos da esposa, com a serva desta, Agar. Agar concebe então o filho primogénito de Abraão, Ismael. A partir de então, Agar passa a desprezar Sara, por esta ser estéril. Eis senão quando acontece o milagre, Sara dá à luz um filho de Abraão, Isac. O feitiço vira-se contra o feiticeiro e desta vez é Sara, empolada pelo poder maternal (digo eu), incita Abraão a expulsar da sua casa Agar e Ismael. Abraão acaba acedendo ao pedido de Sara e Agar e Ismael são expulsos para o deserto passando por perigos e dificuldades sendo, no entanto, salvos por Deus. Nada se sabe da vida de Ismael a não ser pelo Corão, a Tora nada mais diz. Os judeus são, então, filhos de Isac e os muçulmanos de Ismael. Ora é aqui que entra a perspectiva freudiana. Ismael seria o filho rejeitado de seu pai e Isac o seu filho preferido, apresentado como o seu primogénito, segundo a tradição judaico-cristã. Este é, segundo esta tradição, o trauma do filho ilegítimo preterido. E é a partir deste trauma que toda a violência se desenvolve. A hostilidade do filho preterido e ilegítimo não se manifesta contra o pai (como no mito do parricídio primordial) mas contra o filho mais novo, que ocupara o seu lugar ao lado do pai.
Veja-se a passagem de Freud em Moisés e o Monoteísmo em que, tentando enumerar as razões do anti-semitismo, expõe o seguinte:

"Os motivos mais profundos do ódio contra os judeus radicam em tempos muito longínquos, dimanam do inconsciente dos povos, e admito que, de início, não pareçam convincentes. Ouso afirmar que a inveja do povo que se fez passar pelo primogénito, o filho predilecto de deus pai, ainda não foi superada pelos outros, como se tivessem dado crédito àquela afirmação" (Freud, Moisés e o Monoteísmo, Lisboa, Ed. Relógio de Água, p. 136)

Mas o mito do parricídio também está no seio da questão. Ao complexo de inferioridade Freud vem juntar à razão do ódio aos judeus o mito do parricídio primordial:

"O assassínio de Moisés pelo seu povo […] torna-se […] um elo imprescindível entre os acontecimentos esquecidos dos tempos primordiais e o seu ressurgimento posterior na forma das religiões monoteístas. É uma hipótese prometedora, que o arrependimento pela morte de Moisés tenha dado o estímulo para a fantasia de desejo do Messias, que deveria regressar e trazer ao seu povo a libertação e o prometido poderio mundial. […]
O pobre povo judeu, que com a habitual obstinação continuou a negar o assassínio do pai, teve de penar gravemente por isso ao longo dos tempos. Foi-lhes sempre feita a acusação: vós matastes o nosso Deus." (Freud, Moisés e o Monoteísmo, Lisboa, Ed. Relógio de Água, p. 134)

Isac e seus descendentes (os judeus) não só se livraram de Ismael como também da sua figura paterna pelo assassinato de Moisés. O que Freud vem dizer é que foi, precisamente, a culpa do parricídio primordial dos judeus que lhes garantiu um avanço em relação às religiões dos povos do oriente:

"Parece que o propósito inicial do Profeta [da religião maometana] era assumir integralmente, para si e para o seu povo, o judaísmo. A recuperação do pai primordial único deu origem, entre os árabes, a uma exaltação da consciência da sua dignidade, que levou a grandes sucessos materiais, mas que igualmente se extinguiu neles. Alá mostrou-se bem mais grato para com o seu povo eleito do que Iavé para com o seu naquele tempo. Todavia, a íntima evolução da nova religião em breve estacionou, talvez porque carecesse do aprofundamento que no caso judaico a morte do fundador religioso ocasionara" (Freud, Moisés e o Monoteísmo, Lisboa, Ed. Relógio de Água, p.138)

Coisa tão pouco politicamente correcta par ser citada hoje em dia. Podemos entender, no entanto, as palavras de Freud neste sentido: ao matarem o pai, os judeus colocaram-se numa posição privilegiada de crescimento, impeliam-se a crescer.  Já não mais se apoiariam numa figura protectora, garantiam-se liberdade mas também a responsabilidade dessa nova posição. Como refere Freud, descrevendo o tabu dos governantes nas sociedades primitivas em Totem e Tabu,

"é o soberano que vive exclusivamente para os seus súbditos; a sua vida só tem algum valor enquanto que ele cumprir os deveres que lhe são impostos pelo seu cargo, enquanto reger o curso da natureza em benefício do seu povo" (Freud, Totem e Tabu, Lisboa, Ed. Relógio d'Água, p. 71).

Ao matarem o pai, os judeus matam o eterno, o imutável, o dogmático e incitam-se à procura, colocando-se a si mesmos numa posição privilegiada e, por sua vez, colocando deus numa posição tão abstracta quanto possível, o pai torna-se, então, um ideal ("quanto mais longe está deus mais livres são os homens").
Foi talvez nesta ideia que Nietzsche fez proclamar a morte de deus: a assunção de que o homem deve arcar com a responsabilidade da sua liberdade, dos seus actos, da sua existência:

"Eis como então serviam os deuses para desculpar os homens, para tomarem sobre si, não só o castigo, mas também (coisa mais nobre) a falta…". (Nietzsche, Genealogia da Moral, Lisboa, Guimarães Editores, p. 79).

Nietzsche não queria mais um deus crucificado, que nos expiasse os pecados, e nos retirasse a culpa, o sofrimento, a verdade. Deus era, segundo ele "uma resposta grosseira, uma indelicadeza" (Nietzsche, Ecce Homo, Lisboa, Guimarães Editores, p. 41). Queria a culpa e o sofrimento, queria, diria Freud, a consciência da culpa:

"Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objectivo através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa." (Freud, O Mal-Estar na Civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 95)


Para além do mito do parricídio primordial há outras questões que podem ser discutidas, nomeadamente o tema do tabu, no qual podemos incluir a sexualidade e a figura de deus e seu testemunho, o Corão; outro tema interessante é aquilo a que Freud chama "o delírio de perseguição".
Ao verem-se a si mesmos como os filhos preteridos do pai – segundo Freud – os muçulmanos tomam para si a culpa e assumem o seu amor ao pai, identificando-se com ele, tentando ganhar o seu amor. Para isso abstêm-se dos prazeres terrenos de forma a serem recompensados num além mundo. As restrições morais que a si se aplicam podem corresponder à castração. Estas restrições morais do jovem palestiniano fazem-me lembrar o caso do homem dos lobos tratado por Freud. A moralidade constitui a defesa em relação ao desejo incestuoso em relação ao pai, ao medo de castração, ao medo do pai. Mas enquanto que o homem dos lobos sublima o seu recalcamento amando Cristo e praticando acções socialmente aceites, o jovem jihadista justifica o seu suicídio como bomba humana como forma de agradar à sua figura paterna, esperando, assim, ser recompensado no além. A satisfação de deus e a recompensa do além tornam-se o propósito do intento do jovem palestiniano.
No acto de se fazer voluntário para uma operação de bomba humana podemos ainda ver outra interpretação: o desajuste e insatisfação perante um estado de mundo, uma sociedade que teme e com a qual não se identifica. Tomando as palavras de Freud:

"A natureza associal da neurose resulta da sua tendência primordial de fuga a uma realidade insatisfatória para procurar refúgio num mundo de fantasia que promete mais prazer. Nesse mundo, de que o neurótico foge, reina a sociedade dos homens e reinam as instituições por eles criadas colectivamente. Virar costas à realidade é, ao mesmo tempo, abandonar a comunidade dos homens" (Freud, Totem e Tabu, Lisboa, Ed. Relógio de Água, p. p. 109)

Esta fuga à realidade adquire contornos assassinos e suicidas no jovem palestiniano.
Há uma outra passagem de Freud que pode aplicar-se ao rapaz palestiniano na sua visão do povo judeu:

"No quadro deste processo [delírio de perseguição], o doente exagera a importância de uma determinada pessoa, atribui-lhe uma amplitude de poder que atinge o inverosímil, a fim de poder tornar essa mesma pessoa responsável por tudo o que de adverso ou de prejudicial possa acontecer." (Freud, Totem e Tabu, Lisboa, Ed. Relógio de Água, pp. 78-79).

Acabo com uma citação de Freud sobre a questão religiosa:

"mesmo com a continuação do processo de desenvolvimento das religiões, os dois factores impulsionadores, o sentimento de culpa dos filhos e a sua rebeldia não se desvanecem nunca. Todas as tentativas de solução do problema religioso, toda a espécie de reconciliação das duas forças psíquicas em luta vão sendo abandonadas pouco a pouco, provavelmente sobre a influência conjunta de acontecimentos históricos, modificações culturais e alterações psíquicas internas." (Freud, Totem e Tabu, Lisboa, Ed. Relógio de Água, p.213)

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*texto elaborado para o Curso Breve "O Inconsciente e o Sagrado" 2005/2006 (curso leccionado pela Professora Doutora Cristina Álvares do Departamento de Estudos Franceses, Universidade do Minho) tendo por ponto de partida a entrevista publicada em http://ajm.ch/wordpress/?p=374 .

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2 comentários

  1. Entre teologia religiosa e teologia freudiana, venha o Diabo e escolha...
    Agora quando se misturam as duas, vai lá vai!
    Os mitos fornecem justificações para factos históricos e não o contrário, é a minha opinião.

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