Direitos da obra

22:10


Na resposta ao post Copyright e empréstimo bibliotecário do blog Blogjacking fui tentar perceber o que está em causa.
Se por acaso tropeçarem nas notícias e reacções sobre o assunto dos direitos de autor, irão encontrar comentários como os seguintes:
"Apropriar-me do esforço mental e físico de uma pessoa é completamente desajustado"
Rui Reininho

"o que está em causa é tão somente o modo como se concebe o papel dos criadores e o direito de autor. Infelizmente ainda há quem pense - em certos casos a começar pelo Estado - que o acesso à cultura se pode fazer à custa do trabalho dos autores. Ainda há quem pense que o trabalho dos autores, ao contrário do que acontece com o trabalho de qualquer cidadão, pode e deve não ser pago. Como se fosse uma espécie de dádiva divina que deve ser distribuída por todos gratuitamente." Sociedade Portuguesa de Autores
Acho que ninguém discordará destes argumentos. De resto, o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos também se baseia neles ao defender no ponto 2 do Artigo 67º que
"2 – A garantia das vantagens patrimoniais resultantes dessa exploração [da obra por parte do autor] constitui, do ponto de vista económico, o objecto fundamental da protecção legal."
Todos os autores têm o direito de viver do fruto do seu trabalho, como qualquer outra pessoa. Ninguém deveria, sem consequências, apropriar-se do esforço físico e mental de quem quer que seja. Mas o que está em causa é a apropriação, por parte dos beneficiários da lei que protege os direitos de autor, do que quer que seja que entendam por obra.
Antes de mais, é necessário esclarecer o que são direitos de autor. Ora o Artigo 9º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos diz o seguinte
"1 – O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais.
[...]
3 – Independentemente dos direitos patrimoniais, e mesmo depois da transmissão ou extinção destes, o autor goza de direitos morais sobre a sua obra, designadamente o direito de reivindicar a respectiva paternidade e assegurar a sua genuinidade e integridade."
Parece-me esclarecedor. E, agora, importa estabelecer o que é que se entende por obra. E o Artigo 10º do mesmo Código diz o seguinte:
"1 – O direito de autor sobre a obra como coisa incorpórea é independente do direito de propriedade sobre as coisas materiais que sirvam de suporte à sua fixação ou comunicação.
2 – O fabricante e o adquirente dos suportes materiais referidos no número anterior não gozam de quaisquer poderes compreendidos no direito de autor."
O ponto 2 só pode ser esclarecido depois de esclarecido o ponto 1. Mas o que significa exactamente "a obra como coisa incorpórea"? Como existe a obra sem suporte material? Existe na mente do autor? Na minha mente? Num esforço de telepatia controlado entre eu, o autor, os legisladores e toda a comunidade de leitores? E se existe na mente, é uma ideia? Porque se é uma ideia, não está coberta por direitos de autor. O Artigo 1º do mesmo código vem, precisamente, salientar que
"2 – As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas não são, por si só e enquanto tais, protegidos nos termos deste Código."
Confusos?
Mas o.k., digamos que as obras não são ideias, digamos que são "criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas" (ponto 1, Art. 1º). Mas a seguir vem algo como isto: a "obra é independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração" (ponto 3, Art. 1º). Note-se que neste último ponto não está em causa a publicação da obra, não há referência à necessidade de a obra ter de existir como coisa reconhecida publicamente.
Primeiro é dito que as obras são "criações por qualquer modo exteriorizadas", por outros lado são independentes da sua divulgação, publicação? No mínimo pouco claro.
Ideias e criações intelectuais parece-me exactamente a mesma coisa, mas... pronto, farei o esforço e direi que são coisas diferentes.
Então, quando é que uma ideia passa a criação intelectual? Quando é exteriorizada? Mas, então, se são exteriorizadas as obras são dependentes da sua divulgação, publicação. Deixam de ser coisas incorpóreas e passam a ser dependentes do seu suporte material e, por consequência, dependentes do direito de propriedade que qualquer cidadão detém sobre essas, suas, coisas materiais.
Isto significa, num exemplo simples, que eu, que comprei um livro, sou proprietária do mesmo, na sua totalidade e, como proprietária do meu livro material, sou também proprietária da obra que se materializa no meu livro. A obra como coisa incorpórea não existe no meu livro. Existe o conteúdo físico deixado pela tinta preta (ou qualquer que seja a cor) que o acto de impressão deixou ali. A obra como coisa incorpórea existe em qualquer outro lugar - olhem, no mundo 3 de Karl Popper - mas não está no meu livro. Ele não é ao mesmo tempo coisa material e coisa imaterial. No meu livro está, se quiserem, uma reprodução da obra. E nenhuma reprodução da obra pode, com rigor, ser a obra original.


Mas eu gostava de pegar novamente nos argumentos da Sociedade Portuguesa de Autores sobre a necessidade de os autores serem pagos pelo trabalho que fazem, argumentos com os quais, como disse, concordo. Concordo eu e, creio, concordará qualquer cidadão de bom senso. Mas não são os autores, os artistas e afins pagos pelo trabalho que fazem? Não recebem parte dos lucros na venda das suas obras às editoras? Não recebem também parte dos lucros das vendas? Porque razão hão-de querer cobrar vezes sem conta, aos seus leitores (que pagaram já o livro, disco, filme, ...), ad aeternum, pelo trabalho que fizeram uma única vez e venderam? E já não falo sequer do trabalho científico, feito em instituições públicas, sustentado pelo Estado.
Não ponho em causa o direito moral, o mérito a quem o merece, embora compreenda os argumentos de quem não o tolera também. Mas a usurpação, o feudo, a renda, assegurados na lei do direito de autor, sobre uma obra tornada pública, faz-me pensar duas vezes acerca dos argumentos dos seus signatários.
Se os autores são mal pagos pelo seu trabalho, se as editoras/discográficas usurpam o fruto do seu trabalho, se ninguém compra livros, discos, filmes, eu diria que está na hora de mudar de editora/discográfica, de estratégia ou de... profissão. Veja-se aqui e aqui o que aconteceu há um mês atrás.
Outro mundo é possível, outro mundo está a chegar. Vejam-se os exemplos dos Radiohead, dos Coldplay, dos Wilco, dos Nine Inch Nails, e outros.


Claro que uma obra literária e musical existe como coisa imaterial. Mas pertencerá a obra ainda ao autor, uma vez materializada e tornada pública, uma vez entregue e/ou vendida para ser lida/ouvida/vista?
Os estudantes de literatura conhecem, com certeza, o debate que ocorria sempre nas aulas de Teoria de Literatura acerca do trágico dilema da intentio. Eu falo em trágico dilema da intentio porque, à medida que avançávamos nos nossos estudos, começávamos a perceber que a intentio tem mais ramificações do que aquelas que nos queriam fazer crer. A intentio auctoris, a intentio operis e a intentio lectoris correspondem a variantes elementares que se escondem ou realçam no jogo da interpretação. Dizia Umberto Eco - a quem furtei os termos em latim atrás expostos - que "os limites da interpretação coincidem com os direitos dos texto (o que não quer dizer que coincidam com os direitos do autor)" (Umberto Eco, Os limites da Interpretação).
Ora, o que tem a teoria da literatura a ver com direitos de autor ou copyright? Tudo. Uma vez publicada, materializada, a obra já não pertence ao seu autor. Torna-se pública, pertença de quem a detém em que objecto físico for. E sujeita ao escrutínio público, para o bem e para o mal. 
Talvez vá ser considerada uma heresia usar o poema de António Branco para o propósito deste post, mas, ainda assim, aí vai:
Parte, meu poema, ponte incerta,
Dança com a festa das leituras:
Nota como aquele te soletra,
E outro diz-te curto sem cesuras.

Valsa cada antítese que é metáfora,
Recebe cada imagem que não saibas:
Os versos que te prendem são diáfora,
E nada há em ti que em ti não caiba.

Medido, desventrado, corrompido,
Amado, surpreendido, ignorado,
Sentido, acusado, reduzido:
Aceita o que te espera desse lado.

Já não tens pai, perdeste a casa,
nada te protege senão tu.
Não posso recompor as tuas asas:
Desventra, filho meu, o teu casulo. (*)

BRANCO, António (1996). "Epílogo" in Fugidia comunhão. Lisboa: Edição do autor, p. 11 [sublinhado meu].

(*) Poema publicado ao abrigo da alínea d) do ponto 2 do Artigo 75º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

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