Do familiar

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I’d say the final big issue of multiculturalism today is ‘What is the place of nationality?’ Some multiculturalists assumed that we were moving towards an age, an epoch, that they characterise as post-national; this was what post globalisation was going to achieve. I think they were sadly mistaken as events have proved. In the last 10-15 years national identities have become strengthened all over the world, and certainly migrants are constantly being told to be more British, more French, more German. They’re not told to be more European. Most European governments have come to the view that integration means playing up national identity, that national identity is a resource for integration and I actually agree with that view. The question is what kind of national identity. I think we need to multiculturalise our national identities so that the story that we tell about ourselves is one in which the minorities can recognise themselves and have a voice, and it’s not a top down mono-cultural nationalism. 
Texto: "Multiculturalism Bites", Tariq Modood em The History of Multiculturalism, Open University. Em podcast aqui.

Ao ouvir este podcast lembrei-me da minha própria experiência de viagem e dos momentos em que passava nos aeroportos, à espera do avião. Eu costumava gostar de areroportos. Via-os como território neutro, território de ninguém e de toda a gente. Via-os como uma possibilidade de anonimato, de perda de identidade. E isso era bom. Ali podia ser quem quisesse, poderia reinventar-me. Eu sabia que tinha uma identidade marcada no passaporte, mas era só aí. E eu gostava disso: da página branca que podia ser preenchida da maneira que eu quisesse, sem memórias anexadas ou juízos pré-concebidos. Sem nome, sem memória, sem país.
Tinha 22 anos quando fiz a minha primeira viagem para fora da Europa. Na altura, mesmo com pouca idade, tinha a sensação de que carregava demasiado peso na minha identidade. Era um peso insuportável. Lembro-me de um colega de faculdade dizer-me, como se fosse hoje, que a sua profissão ideal era a que lhe permitisse viajar, conhecer pessoas, lugares, cheiros, sons diferentes. Eu também queria aquilo, desde sempre que quis aquilo. Por muitos anos quis aquilo. E assim foi.  
O bom de viajar para um lugar desconhecido é que podemos sempre começar do zero. Podemos começar de novo a definir-nos, construir do nada a nossa personalidade e identidade. Estamos deveras convencidos de que agimos, inconscientemente ou não, moldados pelo ambiente que nos rodeia. O que somos, o que dizemos, o que fazemos, está condicionado pelo momento, pelo lugar, pela cultura, pela gente que nos rodeia. É verdade que não conseguimos fugir a isso, moldamo-nos todos um pouco uns aos outros, mesmo sem querer. Somos plasticina, mais ou menos colorida, moldada pelas circunstâncias, lugares e pessoas que encontramos no caminho. Lembro-me de uma amiga de longa data me dizer que há pessoas que nos fazem bons, como se só conseguissem ver de nós o lugar límpido e colorido, e há outras pessoas que nos forçam a agir intempestivamente, como se tudo o que extraíssem de nós fosse obscuro e negro. Eu creio que é exactamente assim: há pessoas que conseguem, mesmo sem palavras, ver além de nós próprios e trazer à tona o nosso melhor. E há outras pessoas para quem somos opacos, sem que palavra alguma seja eficaz. 
Com os lugares também é assim: há lugares  que nos fazem sentir  em casa, mesmo que nunca os tenhamos visitado. Sendo europeia, sentia-me estranha na Europa, mas não em lugares tão diferentes como Bali, Timor, Burundi ou Cuba. Poderia isso ser? E porque me identificava eu mais com um balinês do que com um madrileno? Porque me sentia em casa com um timorense e não com um suíço. Porque conseguia facilmente entender um marroquino e tinha sérias dificuldades em entender um holandês? Como poderia ser que me sentisse mais confortável  e segura num lugar remoto como Suai, em Timor, Makamba, no Burundi, do que  nas ruas de Amsterdão? E como poderia ser, ainda, que me sentisse mais confortável num aeroporto impessoal do que nas ruas da minha própria cidade ou aldeia? 
E dava por mim a questionar-me sobre o que é familiar. Familiar não é  a infância, não é a memória do que somos, do que fomos. Não é a nossa memória, e não é, definitivamente, a memória que os outros têm de nós. Não são as palavras ditas, não são os momentos passados. Não é a religião onde fomos educados, a cultura que nos transmitiram, o grupo específico onde insistem em nos colocar. Familiar é o lugar onde podemos ser quem somos. O paradoxo é esse: somos nós no exacto lugar onde não nos definem os outros, onde nos definimos a nós mesmos. Familiar é o que somos quando mais nada nos define. Familiar é o que somos longe do que nos define. Paradoxal, eu sei.
Não é que eu me identifique mais com um balinês do que com um madrileno, ou que compreenda melhor um timorense ou um marroquino do que um suíço ou um holandês. E não é que me sinta mais confortável  e segura num lugar remoto como Suai, em Timor, Makamba, no Burundi, do que  nas ruas de Amsterdão. Não é o lugar, longe ou perto, que importa; não é uma nacionalidade específica que faz a diferença, mas a pessoa que está para além das definições de identidade; a nacionalidade é apenas um pormenor. Familiar é o espaço, a pessoa que, esvaziado de identidade, me permite ser quem sou e que eu permito que seja quem é.

Imagem retirada de http://highheelsandddp.blogspot.com/2011/03/citizen-of-world.html


Não sei se falo de valores universais, imperativos categóricos, mas talvez seja isso. Quanto mais viajo, menos vejo as diferenças, menos acredito nas identidades moldadas, à partida, pelas nacionalidades, culturas, religiões, etc. Somos exactamente aquilo que somos quando nada nos define. Nós não somos uma raça, uma nacionalidade, uma língua, uma opinião, uma acção, uma religião, um valor, uma crença. Talvez sejamos, mas somos muito mais do que isso. 
Lembro-me agora de um excerto do livro-diário The Memory Challet, de Tony Judt, que li aqui, em que o autor fala da cidade de Nova Iorque:
I prefer the edge: the place where countries, communities, allegiances, affinities, and roots bump uncomfortably up against one another—where cosmopolitanism is not so much an identity as the normal condition of life. Such places once abounded. Well into the twentieth century there were many cities comprising multiple communities and languages—often mutually antagonistic, occasionally clashing, but somehow coexisting. Sarajevo was one, Alexandria another. Tangiers, Salonica, Odessa, Beirut, and Istanbul all qualified—as did smaller towns like Chernovitz and Uzhhorod. By the standards of American conformism, New York resembles aspects of these lost cosmopolitan cities: that is why I live here.
Porque é que hoje já não se fala em cidades (ou países) cosmopolitas? E porque é o multiculturalismo nos assusta tanto?
Eu, por mim, continuo a gostar dos aeroportos. São-me mais familiares.

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