Cinema

Cinema alternativo no Theatro Circo

10:28

O Theatro Circo abre as portas ao cinema com a inauguração em Outubro de dois ciclos de cinema alternativo: o ciclo "Feminino Singular, Feminino Plural" e o ciclo " Médios Orientes, Orientes Extremos". No dia 15 de Outubro o espaço dá lugar também ao filme "Filme do Desassossego", de João Botelho. A programação pode ser vista em http://theatrocirco-cinema.blogspot.com/.

Consumo

De férias e outros assuntos a propósito de férias

23:20


Foto: Mercado de Díli, 2000

Há dias, numa conversa em torno de férias e destinos de férias, o tema foi desembocar em países como o Brasil, Cuba, Marrocos, Quénia, Timor. Ouvia eu sobre o lamento da pobreza extrema, do incómodo dos meninos a pedir na rua, sobre a visível disparidade do custo do turismo em contraste com o nível de vida da maior parte da população. Países onde uma noite num hotel corresponde a um mês do salário mínimo nacional, onde o preço de um almoço daria para pagar a alimentação de toda uma família durante um mês e cujo custo total da estadia durante uma semana num hotel mediano daria quase para construir uma aldeia inteira.
Ouvia os lamentos e ouvia depois, para meu espanto, as sugestões alternativas para melhores férias, longe do incómodo da pobreza, longe da maçada do incómodo dos meninos de rua a pedir moedas, longe da insegurança de lugares como os mercados africanos, nomeadamente os marroquinos, ou sul-americanos, longe dos aglomerados de pessoas, longe dos olhares de pequenos e grandes ladrões a ougar o prato de lagosta escancarado numa esplanada reluzente qualquer, longe do bulício dos transportes públicos apinhados, numa condução alucinante e sem regras, sem leis ou qualquer outro imperativo que não seja chegar o menos atrasado possível ao destino.
E pensava eu em como tudo aquilo me parecia uma frivolidade. Para mim, todos estes pormenores não me causam desconfiança, mas interesse. Para quem já teve a experiência de viver em África, rodeada de casas com telhados de colmo ou, no maior dos luxos, em casas de telhados de zinco, a tomar banho com uma simples garrafa de água suja, compreende porque a intolerância, desconfiança e medo dos europeus brancos relativamente às particularidades dos países do Sul, que não pertencem à sua histórica, organizada, pontual, limpa e cultural Europa, se tornam uma arrogância insuportável.
Porque a questão é apenas de perspectiva. Se adoptas o papel de turista, vais ser, inevitavelmente, tratado como um. Se te embrenhas no meio do buliço, se comungas os mesmos gestos, se vives as mesmas rotinas, carências, e partilhas dos mesmos espaços, acabas por te fundir com a população, mesmo sendo uma branca no meio de uma aldeia com casas de telhados de colmo.
Se quiseres escolher a segurança de um espaço protegido, gradeado, privativo, vais perceber que os mesmos muros que impedem todos os monstros de entrar, também te impedem a ti de sair; e impedem a visão sobre outros espaços, gentes, lugares, cheiros e experiências absolutamente mágicos. Como o regatear dos preços num mercado marroquino, o gosto do chá de menta e a frescura da casa do comerciante de tapetes, a pele fria de uma cascavel a deslizar no teu pescoço, entrar num comboio para Agadir, apinhado de gente, e tomar parte de uma conversa com um jovem casal marroquino acerca da poligamia, ou ouvir uma refugiada congolesa no Burundi falar sobre a mulher que o marido muçulmano colocou a dormir na sua cama, ou a conversa entusiasmada de um jovem marroquino em Same, Timor-leste, a conspirar contra a monarquia do seu país e a exigir uma revolução, ou partilhar as músicas tocadas à guitarra, a meio da noite, à luz de uma fogueira, por um grupo de rapazes timorenses na praia de Liquiçá. Todos estes pequenos detalhes estão a lés dos muros do teu hotel seguro e murado, com praia privativa.
Com um pouco de sorte, os meninos com quem no dia anterior à tardinha jogaste futebol, virão de manhãzinha à tua casa oferecer-te uma abada de mangas acabadas de apanhar. Se tiveres sorte, o pai da menina a quem na semana passada trataste o pé com um pouco de algodão e álcool, virá de madrugada bater-te à porta para te oferecer um peixe acabado de pescar. Com um pouco de sorte, os mesmos meninos que jogaram futebol contigo, irão convidar-te para conheceres lugares absolutamente estonteantes, intocáveis, paradisíacos, que nenhum guia, de nenhum hotel seguro e privativo, te poderia oferecer, ainda que ousasses sair do teu seguro e privativo hotel. Se tiveres sorte, partilharás, com as mãos sujas e pegajosas do banho de mar, uma tigela de água morna com um bando de meninos sorridentes, felizes porque conseguiste dizer-lhes, na língua deles, um atabalhoado "Olá!".
Com um pouco de sorte, ainda, conseguirás deixar gravado alguma coisa de ti no sítio onde estiveste... mas não no hotel seguro, murado, ordenado e privativo.
Com um pouco de esforço conseguirás voltar para a tua histórica, limpa, organizada, pontual e frívola Europa.

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